Uor é um grande matador de gigantes. Nicolau está investigando uma série de assassinatos misteriosos. Um é um herói de sua espécie e frequenta festas diariamente. Outro está na polícia científica de uma nave espacial rumo a um novo planeta e uma nova esperança para a humanidade. Esses mundos diferentes vão se encontrar de forma explosiva.
Sinopse:
Matando Gigantes é uma space opera de equívocos, ambientada no ano 2127.
Rebeldes haitianos, comandados por duas senhoras de meia-idade, se unem a brasileiros e outros latino-americanos para enfrentar o comando elitista branco e opressor de uma nave em viagem de colonização e terraformação de outro planeta.
Assim que chegam ao destino, as coisas começam a esquentar para o lado dos rebeldes, quando pessoas são cortadas ao meio repentinamente por uma força invisível e assustadora, o que acende o estopim para uma revolução.
A força invisível e assustadora se esconde na nave, são pequenos serzinhos, talvez alienígenas, talvez híbridos, que veem nos gigantes, nós, uma ameaça.
A maioria desses pequeninos é adepta do carpe diem, menos Gus, trans-homem e encarregado científico de seu povo, que, intrigado, decide não ir às tradicionais festas diárias, para estudar melhor os tais gigantes e descobrir métodos melhores para matá-los.
Sonhamos em colonizar o espaço. Levar nossa civilização a outros planetas e, quem sabe salvar a humanidade de algum possível evento de extinção planetária. Mas, em um novo planeta, será que temos a possibilidade de evoluir? Evoluir como pessoas, como cultura? Ou manteremos os mesmos vícios de hoje? É com essa proposta que Cláudia Dugim escreve Matando Gigantes onde ela nos coloca frente a frente com duas civilizações vivendo sob um mesmo teto, mas com formas diferentes de enxergar a vida. E, no fim, me senti preocupado ao chegar a uma mesma conclusão pessimista do que a autora: talvez não tenhamos remédio.
Temos duas narrativas distintas no começo que lentamente vão se interligando. De um lado temos um grupo de seres pequeninos que lutam para sobreviver em seu pequeno espaço. Mas, a presença cada vez mais constante de gigantes próximo ao lugar onde vivem tem tornado a sua vida, que antes era bem tranquila, em algo preocupante. A necessidade de entender melhor esses seres enormes que vivem à margem se tornou imperativa e somente Gus, um trans-homem cuja mente se voltou para além das festas e das brincadeiras habituais, vai ser capaz de encontrar alguma solução. Na outra narrativa, Nicolau precisa investigar uma série de estranhos assassinatos que envolvem o corte de membros por alguma arma cortante. O assassino parece ser incrivelmente astuto ao não deixar rastros. Em uma espaçonave seguindo para Terra 2, os ânimos entre os setores mais pobres e uma elite manipuladora vão esquentando. E uma rebelião parece estar bem próxima de acontecer, colocando em risco a última nave das três que foram enviadas em busca de um novo lar para a humanidade.
"Remorsos são desnecessários, mentiras são necessárias, pondera Gus. Remorsos por causa de mentiras por uma boa causa, como o bem comum: incoerentes."
Essa já não é a primeira vez que eu leio algo da Cláudia. E posso dizer que ler qualquer coisa dela é sempre algo recompensador ao mesmo tempo em que é desafiador. Com um estilo mordaz de apresentar suas histórias, a resposta para aonde ela quer chegar nem sempre está claro. Você precisa ler nas entrelinhas, compreender as ironias e subjetividades de sua escrita. Aqui não é diferente. No começo ela vai bagunçar a sua cabeça e você não vai entender nada do que ela está dizendo. Calma! Respira, continue a ler que eventualmente a ficha vai cair e a narrativa vai ganhar uma clareza arrebatadora. A narrativa é em terceira pessoa, contendo vários núcleos narrativos, e, com isso, todo o contexto se torna nítido em alguns capítulos.
Matando Gigantes é um livro com várias camadas. Por exemplo, a gente pode falar da sociedade dos pequeninos e como ela vive de uma maneira ingênua, beirando ao prazer. Curtir a vida em festas, onde buscar um parceiro ou parceiros é a única preocupação parece ser o ideal perfeito do carpe diem, como colocado na sinopse. Claro que nem tudo são flores. Existe o enfrentamento eventual com os gigantes e uma tragédia que acometeu os pequeninos em um determinado momento. Mas, tudo isso é apagado quando as músicas tocam e os hormônios afloram. Cherv, o chefe de Uor e Gus, se preocupa em manter apenas a sua aparência como chefão, embora ele passe a imagem de alguém meio incompetente e trapalhão. Indicar alguém para ir nas festas de Chervinho, seu filho, parece ser uma comendação enorme. Mas, Gus, um conhecedor, sabe melhor. Entende os problemas dentro de sua própria sociedade. Busca enxergar além das aparências. Ele entende que não basta só matar um gigante eventualmente. É preciso compreender o inimigo e traçar uma estratégia (palavra essa desconhecida entre eles) para melhor lidar com eles.
" - "Como poderemos ponderar sobre os erros do passado e evitá-los no futuro? A fantasia está tão misturada à realidade que ninguém se entende sobre os grandes acontecimentos. As mudanças políticas, a noção de unidade e equidade, tão bem preservada, poderia ser questionada facilmente. As pessoas dão graças às Estrelas Caminhantes, deusas inquestionáveis, por nunca ter havido um grande questionador, antes de Gus, eu mesmo."
Vale mencionar como a Claudia inova em um momento em que precisamos de obras que não se atenham aos cânones e clichês de uma ficção científica limitada no tempo. Matando Gigantes é representativa; é uma narrativa que atravessa a questão de gênero, não entendendo-a a partir de um significado maniqueísta bobo. Por exemplo, entre os pequeninos a questão do gênero é muito relativa, ficando a critério do indivíduo defini-lo. Gus é um pequeno do sexo masculino, mas detentor de uma vagina. Ou seja, é um transexual. O casamento entre eles pode ou não ser monogâmico. Desde que exista uma química entre as pessoas. Vamos ver exemplos dos dois casos. Até é engraçado quando acontece o choque de culturas e um dos pequeninos pergunta a um dos personagens por que eles se casam com uma só pessoa e que precisa necessariamente ser do outro sexo.
Se vamos falar de inclusão, precisamos falar de outros personagens. As líderes do movimento rebelde são duas mulheres de meia-idade que carregam em si a experiência de lutas passadas, mas com uma energia tão grande quanto a de jovens. Por que o protagonismo não pode ser dado a elas? Mama Bá é uma personagem extremamente importante para a trama e as negociações futuras precisam passar por ela. É uma articuladora nata. Claire também precisa assumir esse manto em algum momento. E vai se revelar tão sutil quanto Mama Bá, embora mais impulsiva. A mescla cultural também está bastante presente no livro. Haitianos, brasileiros, entre outros estão nos setores da nave. Como sempre, representam povos explorados pelos poderes que comandam tudo.
"Nicolau percebe que, ao abandonar a Terra, os humanos não deixaram para trás milhares de anos de opressão, ganância, tirania e preconceito, como acreditavam os ufanistas. Porque isso não pertencia ao planeta; pertencia a eles, humanos."
A parte investigativa cobre toda a primeira parte do livro em que de um lado os pequeninos desenvolvem meios para saber mais a respeito dos gigantes. E do outro, segue a investigação de Nicolau que o leva a entrar em contato com os rebeldes. Esse contato com Claire, Daniele, Mama Bá e tantos outros o leva a questionar suas próprias certezas sobre um mundo que deixou de fazer sentido. Viver em uma bolha de segurança o coloca em confronto com seus próprios ideais. Já no outro núcleo narrativo, Uor precisa entender o que a sua função de herói inclui como responsabilidade para com seu povo. Ser herói é apenas ir a bailes e encontrar fêmeas para se relacionar, ou existe algo mais? Esse confronto de ideias vai derrubar também as suas certezas sobre o status quo onde vive e obrigá-lo a sair do pequeno lago seguro que é sua vida para enfrentar um grande oceano incompreensível em um primeiro momento.
A discussão sobre o futuro da humanidade me deixou preocupado. Porque é inevitável a gente chegar ao mesmo raciocínio da Cláudia. Provavelmente eu sou um pouco mais velho que os meus colegas blogueiros de literatura de gênero e tenho uma visão mais sórdida e menos idealizada da vida. Porque ao longo da narrativa vemos como a busca pelo poder cerceia todas as relações. E o quanto relações de desigualdade social se mantiveram mesmo sob um discurso de que a humanidade não repetiria os mesmos erros do passado. A existência de uma camada protegida e que se livraria dos demais caso fosse necessário é um sinal dos tempo em que vivemos onde a vida do homem vale tão pouco diante dos anseios de um grupo. O final é de um pragmatismo ímpar e quem espera uma mensagem de final feliz e todos viverão contentes vai se espantar com a transparência da autora. Mais do que isso seria dar spoilers.
Alguns pontos sobre o livro precisam ser destacados. Primeiro que eu achei que a presença dos membros do Coração ficaram sutis demais. Eles aparecem muito na frente e precisavam ser estabelecidos cedo. As instituições que administram a nave me pareceram abstratas demais até que elas foram apresentadas pela autora. Como se trata de uma narrativa que foca bastante nessa relação de dominação e exploração de uma massa por um pequeno grupo, a elite me pareceu ausente dessa discussão. Por muito tempo achei que o Juan era um dos membros dessa elite. Que eu não entendia exatamente quem eram ou o que representavam.
"Todos somos envolvidos de uma forma ou outra pelo sentimento político, querendo ou não. Desse sentimento depende o bem ou o mal coletivo. Quem nos comanda é o nosso reflexo, se não nos agrada o que vemos no espelho, mudamos, simples assim. Pelo menos em teoria; na prática, cada indivíduo tem sua própria vaidade, para uns o defeito está no cabelo, para outros na roupa, harmonizar o todo não é uma tarefa fácil. Os governos opressores costumam baixar a autoestima do povo a tal ponto que nem no espelho ele vai querer se olhar mais."
Além disso a história sofreu com uma quantidade grande de assuntos e temas apresentados pela autora. Isso é uma faca de dois gumes. Por um lado, torna a narrativa rica em detalhes e nos permite encontrar novos assuntos a cada releitura. Por outro lado, faz com que a narrativa sofra por precisar se focar em outros temas que não o desenvolvimento dos personagens ou a condução da narrativa. Por exemplo, o mundo dos pequeninos é fascinante e a maneira como ele se choca com os problemas da espaçonave é um momento de virada. No entanto, a rebelião que se iniciava e a necessidade de expor como Martina e seus aliados se colocavam no jogo sublimaram esse debate. A maneira como as duas enxergavam uma a outra renderia bons capítulos de confusão, desentendimento e dúvida. As possibilidades são tantas que seria possível até enxergar a possibilidade de Matando Gigantes precisar de um segundo volume.
Mais um bom livro dessa coletânea Futuro Infinito, criado pela editora Patuá e que abraçou autores de ficção científica com histórias ricas, reflexivas e engajadoras. Pude ler um romance longo da Claudia Dugim que sempre tem uma boa história para contar, com um pouco de doçura e muito de crítica social. É impossível não se encantar com o livro e não pensar em tantas possibilidades e em quanto estamos caminhando para a estrada errada.
Ficha Técnica:
Nome: Matando Gigantes
Autora: Cláudia Dugim
Editora: Patuá
Número de Páginas: 336
Ano de Publicação: 2019
Link de compra:
*Material enviado em parceria com a autora
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