Mausoléu foi a primeira coletânea de histórias curtas do Duda Falcão, um dos maiores autores nacionais especialistas no weird e no terror. Agora, a Avec Editora republica para nós essa preciosidade, onde poderemos conhecer alguns dos contos que projetaram a carreira desse grande autor.
Sinopse:
Se você ainda não conhecia o Mausoléu agora é a hora! Deixe a atmosfera macabra do horror invadir suas noites. Aventura, ficção científica, fantasia sombria, terror, tudo fervendo em um mesmo caldeirão para alimentar seus pesadelos.
Mausoléu foi um dos primeiros livros por onde conheci o trabalho do Duda Falcão. Na época de seu lançamento, há bastante tempo atrás, volta e meia a coletânea aparecia na minha timeline. Mas, por incrível que pareça, no meio de tantas coisas que lia naquele momento, passou longe das minhas mãos. Anos depois, pus as mãos em Comboio de Espectros por onde pude conhecer os personagens e os mundos imaginados por ele. Quando fui correr atrás de Mausoléu, já era um livro bem complicado de encontrar. Então fiquei muitos anos só na vontade de ler. Agora a Avec Editora traz novamente essa coletânea que tem uma diversidade de histórias, com personagens que podem ou não se repetir. Alguns dos cenários que ele cria aqui vão reaparecer em contos presentes em outras coletâneas como Treze ou Mensageiros do Limiar. Isso aqui é o puro suco do pulp, do weird, do horror cósmico. O leitor vai conseguir ter acesso a todas as referências do Duda como Edgar Allan Poe, Bram Stoker, Mary Shelley, Robert Chambers e tantos outros. Acho até que Mausoléu é a melhor porta de entrada dentre todas as coletâneas.
Como se tratam de histórias curtas, vou fazer alguns breves comentários sobre alguns deles para destacar aspectos da escrita do autor. Poderia começar por Mausoléu, primeiro conto da coletânea e que dá nome a ela, mas vou falar de Museu do Terror, uma das minhas histórias favoritas desse livro e a que muitos consideram como tendo sido o cartão de apresentação do Duda. Nele, somos colocados em uma espécie de museu de horrores dentro de um parque de diversões. Um pai e um filho estão acessando o seu interior e o pai não vê graça e até fica meio preocupado com a estranheza do lugar. Mas, seu filho, como qualquer criança curiosa vai seguindo por entre as salas do local e conhecendo todo o tipo de artefato bizarro. Duda vai mostrando as leituras que fez pelas salas e de onde vem suas inspirações. Tem a Pata do Macaco de W.W. Jacobs, um gato preto falando de Edgar Allan Poe e até uma máquina para prender uma criatura a ser reanimada, retirando a ideia cinematográfica dos antigos filmes de Frankenstein. Tudo é apresentado com calma e o nível de estranhamento vai crescendo pouco a pouco. Aqui a gente percebe uma qualidade do Duda: ele não tem pressa. Parece contraditório em um autor de histórias curtas, mas é bem isso mesmo. O Duda sabe usar bem o pouco espaço que tem. Usa com eficiência e as descrições são precisas o suficiente para instigar a curiosidade e provocar a tensão no leitor. O final é de derrubar a gente bonito. A gente não espera aquilo.
Tem vários contos que nos remetem a Edgar Allan Poe, um autor que está marcado na escrita do Duda assim como H.P. Lovecraft. Poderia citar vários desses contos que trazem lembranças ou de O Corvo, ou de O Gato Preto, ou de A Queda da Casa de Usher. Mas, para mim o conto que define a maneira como Duda pensa Poe é A pena do corvo. Neste conto, um homem compra uma pena que o contrabandista afirma ter pertencido ao próprio Poe. O comprador testa o seu novo brinquedo e começa a ter uma estranha sensação criadora. A pena flutua pelas páginas como se tomada de vida própria. Ele perde a própria noção do tempo e quando ele finalmente sai do cômodo, existe uma estranha obsessão em conseguir outros artefatos de Poe. Será isso um desejo inconsciente do próprio Duda de encarnar a habilidade quase onírica do famoso poeta do trágico? Quantos de nós já não desejamos nos tornar um autor que idolatramos apenas para produzir algo no mesmo nível? É um estranho desejo que este conto consegue entregar com um horror súbito.
O autor gosta também consegue entregar boas histórias pós-apocalípticas. Em Antigos, ele nos leva a um mundo habitado por criaturas de muitas patas semelhantes a aranhas. Uma delas, Quetza, nosso protagonista, ficou incumbido de entrar na Cidade Proibida onde obterá o conhecimento dos antigos, algo reservado apenas a uma casta de sacerdotes. Com essa premissa, Duda usa o protagonista como nossos olhos e ouvidos já que suas observações nos fazem descobrir mais sobre esse estranho lugar e seus mistérios. Mais ou menos no final, o personagem fica sabendo como o mundo chegou ao lugar em que se encontra. A narrativa serve para apresentar Quetza como um guardião do conhecimento, cuja difusão entre seus semelhantes não é interessante já que destruiria boa parte de suas crenças. Quetza fica em uma encruzilhada onde ele precisa pesar se a verdade é realmente necessária; se a ignorância pode ou não ser mais benéfica. Isso se apresenta a ele como um fardo terrível, algo que é contestado depois por um de seus semelhantes. Aliás, será o seu conhecimento sobre a Cidade Proibida que o salvará dos perigos desse estranho novo mundo. Se refletirmos um pouco sobre em que gênero podemos encaixar Antigos, podemos dizer que é a aventura de Duda Falcão pela weird fiction, que ganhou popularidade nos últimos anos graças a Jeff Vandermeer.
A partir da página 100 vamos começar a conferir alguns personagens ou cenários mais recorrentes do autor como os reinos de Lyu. Nas próximas coletâneas terão outras histórias passadas neste local. Aqui é o Duda entrando no universo das histórias de capa e espada, e sua pegada lembra demais a de Robert E. Howard (nome este forte nestes cenários recorrentes). Temos três histórias consecutivas neste cenário, mas queria destacar a primeira delas chamada Sem Lembranças daquele inverno. É aquela história típica do gênero com feiticeiros, maldições, mercenários, mulheres tentadoras e mortais. Na história um anão, servo do grande mago Gimedjin, está à procura de um mercenário famoso da região chamado Atreil. O mago deseja contratá-lo para recuperar um artefato de imenso poder roubado por sua discípula. O que parece ser uma tarefa simples se revela complicada já que a aluna se revela uma poderosa domadora de animais e o mercenário precisará de toda a sua habilidade para superar os desafios. É uma grande aventura em que os leitores irão se divertir com uma história bem direta neste sentido. Tem uma virada narrativa lá no final que vai nos pegar de surpresa.
Outro personagem do Duda Falcão que se tornou famoso é Kane Blackmoon, o caçador de recompensas que enfrenta poderosas criaturas sobrenaturais. De certa forma, Bisão do Sol Poente é a história de origem do Kane. Aqui a gente descobre como o personagem acabou se envolvendo com um mundo ao qual ele nada conhecia antes. Na história, Kane está atrás de Hector Calderón, o chefe de um grupo de bandoleiros que tem assaltado bancos e diligências da região. A recompensa é polpuda e Kane precisa de uns trocados para se manter por alguns meses. Só que quando ele chega até o local onde o bando parece ter se escondido, ele descobre que os membros do bando foram mortos junto com toda a população da cidade. Somente Calderon não é encontrado. Seguindo o encalço do líder do bando, Kane esbarra em Sunset Bison, um xamã sioux que parece conhecer mais do legado da família Blackmoon do que Kane poderia ter imaginado. Junto com estas informações, vem o aviso de que Calderon está sendo protegido por forças além de nossa imaginação. Duda cria um mundo baseado no gênero do faroeste estranho que Howard também tornando famoso. Gosto que o Duda moderniza o gênero e dá um rosto próprio ao que está escrevendo. Ele poderia ficar confortável apenas se baseando nos clichês do Howard e conseguindo um sucesso semelhante. Na minha opinião, o que Duda escreve está mais para os roteiros do Gianfranco Manfredi em Mágico Vento do que para o Robert E. Howard.
Mas, Duda também consegue passar pela história e pela cultura brasileira, dando uma pitadinha do estranho em momentos específicos. Massacre na Caravela é um bom conto que se utiliza do choque cultural e da resistência indígena à chegada dos portugueses no Brasil colonial. É até uma maneira de fugir da falsa noção de que os portugueses foram recebidos de forma aberta e igual por todas as tribos indígenas dessa época. A protagonista possui uma característica especial: ela foi empossada por um espírito animal e desde então é dotada de algumas habilidades sobre-humanas. Quando os portugueses chegaram e não obtinham o que desejavam, eles partiam para o massacre das tribos indígenas locais. Algumas das tribos passaram a pegar em armas e a resistir à instalação dos mesmos no Brasil. Só que a diferença tecnológica oferecia uma vantagem devastadora a eles. É então que a protagonista entra: em dias de lua cheia, ela sofre uma terrível transformação e obtém uma força capaz de fazer frente a essa diferença entre colonizador e indígenas. Sim, é a releitura de Duda Falcão ao mito do lobisomem. Uma boa história!
O último conto do qual gostaria de fazer um breve comentário é o último chamado Humanos, Monstros e Máquinas. É a homenagem do Duda Falcão a Mary Shelley. Ele mostra a sua versatilidade criando um universo steampunk marcado por criaturas sobrenaturais. Mary, ainda solteira, adentra em um mundo de homens e mulheres exóticos ao conhecer Percy Shelley. Seu interesse por ciência vem do seu contato com seu mentor, o brilhante dr. Frankenstein. Ao se encantar por Percy, ela não sabe de onde vem essa súbita atração. Ao conhecê-lo melhor, ela se defronta com um mundo obscuro que vive nas margens de Londres. O desaparecimento de seu mentor vai suscitar uma série de desconfianças quanto a esse grupo com o qual ela se envolveu. Duda consegue manter a atmosfera do século XIX, colocando tecnologias avançadas aqui e ali para mudar a visão que temos desse mundo. É um conto bastante original que revisita algumas das histórias mais tradicionais da era vitoriana.
Poderia falar sobre vários dos outros contos, mas acho que vale a pena o leitor descobrir por si só a magia dos mundos e personagens criados pelo autor. É lógico que nenhuma coletânea é perfeita e vão haver aqueles contos menos interessantes ou aquele gênero de histórias que o leitor vai preferir pular. Normal. Aprendi nos anos em que analisei coletâneas que elas são um tema bastante subjetivo para cada leitor. Mas, a magia delas é que elas não tem uma ordem para serem lidas. O leitor pode iniciar por qualquer uma delas, seja indo desde o começo, escolhendo uma com um título interessante ou abrindo uma página aleatoriamente. Vai do gosto de cada um. Mas, admito que sempre consigo curtir as histórias do Duda. E acho que elas vão agradar a quem curte uma boa aventura ou uma história de terror daquelas bem pauleira.
Ficha Técnica:
Nome: Mausoléu
Autor: Duda Falcão
Editora: Avec Editora
Número de Páginas: 272
Ano de Publicação: 2022
Avaliação:
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*Material recebido em parceria com a Avec Editora