Uma batalha interdimensional está prestes a acontecer em uma das maiores cidades do mundo, Nova York. Esta finalmente despertou e diversos avatares representando distritos especiais ganham uma consciência de conjunto enquanto um poderoso inimigo se esgueira nas sombras para destruir esta realidade. Caberá a estes avatares colocarem suas diferenças de lado para enfrentar esta terrível situação.
Sinopse:
Toda cidade tem alma. Mas toda cidade também tem um lado obscuro. Um mal antigo espreitando sob a terra, esperando pelo momento certo para atacar.
E quando Nova York desperta, corporificada na figura de um franzino garoto de rua, o ataque que se segue é brutal. O jovem, avatar da metrópole, fica em um coma mágico, e a cidade corre perigo com o mal que infesta ruas e pessoas, ameaçando destruí-la.
É então que outros cinco avatares são chamados à luta.
Em Manhattan, um jovem universitário sente o pulsar da metrópole e compreende seu poder. No Bronx, a diretora lenape de uma galeria de arte descobre estranhos grafites que a atraem de maneira irresistível. No Brooklyn, uma antiga MC que entrou para a carreira política consegue ouvir a música da cidade. No Queens, uma imigrante indiana com um visto de estudante não entende como pode se tornar parte de um lugar que mal a reconhece como cidadã. E em Staten Island, a filha oprimida de um policial violento sente o resto da cidade chamando por ela.
Enquanto isso, o avatar de Nova York dorme, esperando que seus distritos consigam se unir e expulsar de uma vez por todas o invasor monstruoso à caça deles.
Para quem achava que o fato de Jemisin ter ganho três Hugo Awards com a série Terra Partida foi um acaso, em Nós Somos a Cidade ela demonstra mais uma vez porque é uma das autoras mais talentosas da atualidade. O que impressiona no romance é como ela é capaz de esticar a noção de fantasia para alguma coisa mais ampla. A autora deixa de lado alguns clichês típicos do gênero para abraçar algo simbólico e metafórico capaz de entregar a mesma impressão, mas de uma forma diferente. Ao fazer a leitura inicial do romance, a impressão que me veio à cabeça foi o capítulo inicial do livro Introdução à Literatura Fantástica, escrita por Tzvetan Todorov que li há alguns anos. Nele, Todorov busca analisar as definições dadas ao termo e introduz a noção da hesitação do leitor. Na visão dele, para que um texto possa ser considerado de fantasia, precisaria cumprir três condições. A primeira delas é:
"é preciso que o texto obrigue ao leitor a considerar o mundo das personagens como um mundo de criaturas vivas e hesitar entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados."
No romance, temos um estranhamento inicial por conta da abstração dos elementos sobrenaturais empregados pelo texto, mas em pouco tempo começamos a entendê-los como parte da "magia" que é empregada pelos personagens. Não espere personagens usando bolas de fogo ou raios, mas usando dutos e encanamentos como se fossem braços, ou prédios funcionando como membros, ou pontes sendo afetadas quando os avatares forem feridos. Essa hesitação inicial dá lugar a um sentimento de normalidade e maravilhamento. Nesse ponto, a escrita de Jemisin é agradável a ponto de não sentirmos tanto o baque de tantas informações abstratas. Ajuda também a ótima tradução de Helen Pandolfi que foi capaz até mesmo de não impactar o fluxo de leitura com a quantidade de expressões idiomáticas presentes na escrita da autora. Muitas informações poderiam ter se perdido caso a tradução fosse feita sem o cuidado e atenção destacados aqui.
Estou comentando tudo isso, mas sobre o que é a história? A narrativa começa com o conto original que deu origem à série onde um garoto sem nome acaba se transformando lentamente no avatar de Nova York. Sua conexão com a cidade é tão grande que ele consegue sentir a respiração da cidade, ouvir os ruídos e emoções que ecoam por suas ruas. Algum monstro sobrenatural parece querer dizimar a cidade e todos aqueles que vivem nela e a única coisa que está em seu caminho é este garoto. O confronto entre ambos afeta todas as estruturas da cidade e depois deste confronto tanto o garoto como seu adversário são arremessados longe. Enquanto o garoto desaparece, o monstro apenas se enfraquece temporariamente, já planejando como contra-atacar. Nisso, cinco pessoas despertam como distritos vivos, capazes de manipular poderes e habilidades além de sua compreensão. Agora esses novos avatares precisam buscar o paradeiro de Nova York para deter o adversário que tem espalhado lentamente os seus tentáculos de corrupção por toda a cidade e se tornado mais forte do que no primeiro confronto.
A escrita de Jemisin está em um nível diferente do que se costuma ver em outros livros do gênero. Enquanto que alguns autores preferem uma abordagem mais eloquente e repleta de informações, Jemisin é mais concisa e eficiente nas frases usadas. Cada parágrafo é carregado de significados e ela não se incomoda em sacar ferramentas criativas que o leitor não imaginaria encontrar da maneira como são utilizadas. Por exemplo, Jemisin usa fartamente o fluxo de pensamento, principalmente nos capítulos iniciais. Buscando simular um sentimento de confusão e incompreensão, as frases demonstram essa percepção ao perpassarem por vários assuntos e impressões, porque é a velocidade com a qual o cérebro tenta dar forma ao que o personagem está observando. A narrativa empregada é a terceira pessoa, mas fica aquele alerta porque é bem diferente do tipo onisciente comum. É uma narrativa que invoca alguns graus de impressões sensoriais, como se fosse uma pseudo-narrativa em primeira pessoa. Essa forma de contar a história nos ajuda a criar uma conexão e uma empatia maior com os personagens. Em poucos capítulos já estamos demonstrando nossas preferências sobre qual gostamos mais, qual queremos acompanhar a história.
"E mesmo assim, depois de um momento, Aislyn se pega sorrindo também. Levemente. Depois dando risinhos, conforme a tensão do momento se dissipa. A risada é mais do que contagiosa. Aislyn está infectada. Desenvolvendo uma conexão através da catarse. De repente, ela e a Mulher de Branco estão rindo juntas, tanto que os olhos de Aislyn ficam marejados pela força de sua própria gargalhada, e tão intensamente que, por um belo momento, todos os problemas parecem insignificantes. É como se elas fossem amigas há anos."
Teoricamente o protagonista é o avatar de Manhattan, que recebe o apelido de Manny. Só tem um detalhe: ele não sabe quem é, não tem memórias sobre si mesmo, apenas conhecimentos gerais e impressões que podem ajudá-lo em sua jornada. Novamente a autora emprega o expediente do personagem que não sabe de si. Na série A Terra Partida ela faz isso algumas vezes onde ela não revela exatamente a identidade do personagem, apenas para derrubar nossas falsas impressões mais à frente na narrativa. Ao colocar este grau de imprevisibilidade, ela tira a nossa capacidade de desenvolver expectativas, fazendo com que a aventura ganhe em tom inesperado e a própria leitura seja uma aventura. Com Jemisin, nunca espere saber o que vai vir a seguir porque ela vai dar uma rasteira nas suas certezas. Além de fornecer essa imprevisibilidade, Manny funciona como um personagem-orelha para fornecer estruturas sólidas para que possamos compreender a "física" da magia/fantástico que ela pretende empregar. Fico impressionado com como ela consegue criar universos fantásticos com tamanha complexidade e explicar tão didaticamente ao leitor, sem grandes info dumpings. Em menos de cinquenta páginas, o leitor tem todas as informações que precisa para transitar pelas páginas e compreender parcialmente a trama principal.
Esse é um livro que fala muito sobre o cosmopolitismo da cidade de Nova York. O quanto ela é uma cidade que agrega culturas e tradições vindas de diferentes partes do mundo. E que mesmo assim, possui uma identidade própria. A existência de cinco avatares que possuem características e personalidades diferentes demonstra o quanto a cidade é imensa e reúne todo um espectro de luzes e cores que as definem. O fato de Jemisin dar vida a estes lugares pode parecer loucura em um primeiro momento, mas a verdade é que eles são de fato vivos. Ao mesmo tempo, a autora busca recuperar a identidade original destes lugares que acabam caindo no esquecimento dada a sua internacionalização. Com um mundo hoje tão afeito a estímulos visuais e a interferências urbanas de várias origens, a memória se perde em um influxo constante do "novo e melhor". Para o leitor, é preciso atentar que não é só uma questão dos marcos históricos ou dos fundadores originais, mas do que faz um lugar um lugar. Os cheiros, os ruídos, os sentimentos, as ocasiões, as sensações. À medida em que vamos nos tornando mais velhos e permanecendo em um mesmo lugar, vamos criando uma certa familiaridade com ele. Quando nos mudamos e adotamos um novo lar, temos aquela sensação inicial de estranhamento porque determinadas sensações se perdem já que a nossa base de impressões ficou aonde morávamos inicialmente. É algo difícil de explicar em palavras.
A presença de uma intolerância violenta também é discutida nas páginas do livro. Isso se une a uma mudança paradigmática onde as pessoas se sentem no direito de agredir as outras caso não concordem com uma postura ou um comportamento ou uma forma de viver. Lembrando que por boa parte do século XX, os EUA foram um país bastante xenofóbico e preconceituoso. Basta voltarmos no tempo na década de 1950 e a luta dos negros por maiores direitos civis e políticos. Temos vários momentos da narrativa em que personagens expressam abertamente a sua vontade de agredir até fisicamente aqueles que são diferentes sejam eles negros, homossexuais, orientais, pertencentes a outra religião. É um fenômeno que vem crescendo nos últimos anos em que os "esqueletos saíram do armário", usando uma expressão tipicamente americana, após a ascensão do conservadorismo trumpista. Jemisin não chega a abordar a partir de uma linha política, se atendo mais ao cotidiano e a como as pessoas comuns acabaram mudando a sua percepção de mundo. Ela usa essa intolerância como faísca para a influência do adversário que ela criou na trama, alguém que se aproveita desse negatividade que parece ter se apropriado dos corações e mentes de uma população que foi progressista por tanto tempo.
Junto a isso, Jemisin também explora as redes sociais como uma forma de atacar a integridade moral dos personagens. Bronca e suas companheiras sofrem pesados ataques de pessoas que se dizem "justiceiras virtuais e defensores da verdade", mostrando suas opiniões tolas e infantis sobre a sexualidade das personagens, suas opiniões e ideologias. O quanto um ataque virtual poderoso pode deixar uma pessoa sem chão, acabando com uma carreira, provocando quase uma espécie de caça às bruxas. Tais trolls de internet não se importam com métodos, consequências ou quem estiver pelo caminho: sua agenda é mais importante do que tudo isso. E as coisas precisam ser feitas à sua maneira, caso contrário estão erradas. Não há espaço para diálogo ou argumentação. Ou é ou não é; e isso é uma visão míope sobre o mundo porque tudo se reduz a um maniqueísmo tolo que não tem futuro. Não há um diálogo para chegar a uma síntese e a formulação de uma nova teoria. O que temos é uma imposição do que eu quero em cima do que as pessoas não desejam. Ponto. Essa temática é abordada de uma maneira elegante através do núcleo do centro de arte.
Diversidade é uma ótima palavra para usar para definir a variedade de personagens presentes na história. Temos um homem negro homossexual, uma imigrante indiana, uma advogada negra bem-sucedida, uma indígena lésbica se encaminhando para a terceira idade, uma conservadora branca típica e um homem negro com traços latinos. E NADA DISSO É FORÇADO. Vivemos em um mundo globalizado e estarmos em uma grande capital mundial significa uma população diversa e miscigenada. Lógico que o Brasil, nesse sentido, é miscigenado de origem por conta da violência da colonização portuguesa, mas Nova York é uma capital mundial onde inúmeras culturas se encontram. Para aqueles que gostam de achar que tudo é "lacrativo" hoje, reveja seus pensamentos e concepções. A narrativa é redondinha e os personagens se encaixam bem na maneira como os nova iorquinos levam a vida. Aliás, a cidade sempre teve um tom progressista comparado a outras dos EUA. Essa diversidade é bastante explorada pela autora que entende isso como um ponto forte e capaz de derrotar um inimigo que se alimenta da ignorância e do desprezo.
"Deuses de verdade não são o que a maioria de vocês, cristãos, entende como deuses. Deuses são pessoas. Algumas vezes pessoas que já morreram, algumas vezes pessoas que estão vivas. Algumas vezes pessoas que jamais viveram. Eles têm funções, trazer prosperidade, cuidar das pessoas, garantir que o mundo funcione como deve. Eles se apaixonam. Têm filhos. Lutm. Morrem. É um dever. É normal. Superem."
Jemisin tem um ótimo feeling sobre o ritmo da história. Ela nos entrega grandes momentos de tensão e drama onde os riscos são altos para os personagens, mas também nos dá tempo de respirar e conhecer melhor aqueles que fazem parte da trama. Então a história passa bem, sem nos sufocar em um looping de ação incessante. Conseguimos ler rapidamente não porque a história possui um estilo forçado, mas porque a escrita é boa e nos faz querer saber o que vai acontecer a seguir. Ouso dizer até que a autora consegue estar com alguns níveis acima do que ela fez em A Terra Partida porque ela tem um domínio maior sobre suas habilidades. Não há a necessidade de ser explosiva se é possível dar dois passos atrás e deixar a construção de mundo mais precisa e completa. Só tenho elogios ao começo dessa nova empreitada da autora. E, assim como foi em outros anos, Jemisin foi indicada a vários prêmios e só o tempo dirá se esta série terá o mesmo sucesso das anteriores. Na minha modesta opinião, tem e muito.
Ficha Técnica:
Nome: Nós somos a cidade
Autora: N.K. Jemisin
Série: Trilogia Grandes Cidades vol. 1
Editora: Suma
Tradutora: Helen Pandolfi
Número de Páginas: 336
Ano de Publicação: 2021
*Material enviado em parceria com a editora Suma
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