Nesta coletânea de quatro contos escritos por Brenda Bernsau, temos uma papisa que tenta entender a fé da humanidade, uma repórter obcecada por uma artista misteriosa, uma irmã presa a um mundo de mentiras e quatro mulheres presas em uma ilha que não sabem quem são.
Desde o seu livro de estréia que eu curti muito a escrita da Brenda. Ela tem um estilo bem diferente de outros autores nacionais e não tem medo de ousar. Sua escrita tem uma forte de influências ligadas a clássicos como Alice no País das Maravilhas e contos de fadas. Aqui ela criou quatro narrativas encantadoras que exploram as suas diversas facetas como autora. É lógico que como em qualquer coletânea de contos, vai ter aqueles que o leitor vai gostar mais e outros menos. Entretanto, vale dizer que todos são de um bom nível de escrita e ela não deixa a peteca cair.
Só um detalhe pequeno que a autora precisa atentar quando puder: a formatação do ebook ficou bem estranha. Não sei se isso foi apenas no meu Kindle, mas provavelmente seria legal rever como se deu essa formatação. Às vezes o programa criador da Amazon acaba bagunçando o texto (o KDP Select muitas vezes faz isso mesmo). Outro ponto que a autora precisa cogitar é passar por um copidesque bem básico, mais para aparar arestas do que qualquer coisa.
Vou falar brevemente sobre cada um dos quatro contos de forma a que a postagem não fique muito longa. A primeira história brinca com a ferramenta dos Pontos de Vista em histórias. Me fez lembrar um filme de mesmo nome em que somos colocados em uma mesma cena, mas enxergando o ponto de vista distinto de cada pessoa próxima ao acontecimento. Aqui, Brenda usa os pontos de vista para ir montando as peças do quebra-cabeças. Nenhuma das quatro personagens presentes sabe quem é. Elas apenas sabem que uma pessoa é a patroa e as outras três obedecem a ela. Sabem também que estão presas a essa ilha e que eventualmente chegam suprimentos nela. Fora isso, vai ser o leitor quem irá construir os detalhes pouco a pouco à medida em que cada uma das personagens vai dando o seu próprio depoimento e visão sobre o que acontece ali. A autora faz um trabalho soberbo com as personagens. Cada uma tem características bem distintas umas das outras. À medida em que vamos conhecendo o lado de cada uma e como elas se relacionam entre si, a história vai se desenrolando como um novelo até culminar no grande plot twist do final.
No segundo conto, temos uma papisa escolhida após o escândalo de sua antecessora. Em um mundo regrado dentro das paredes de seu templo, Eloá vai percebendo pouco a pouco como tudo é falso e o quanto a fé das pessoas foi corrompido pelos tempos. Nesse segundo conto, Brenda explora a percepção de sua personagem acerca do que a cerca. Através de sua capacidade de observação, ela questiona o status quo. O que vale aqui é a sensibilidade da personagem: os olhares dirigidos a ela, os pequenos julgamentos, a apatia. O que é a fé? Como a religião se insere na vida das pessoas? Ao ler esse conto, logo me veio a mente a velha discussão nietzcheana quanto à morte de Deus. O fato de que hoje a religião é bastante questionada quando ela representa algo mais transcendental do que normativo. É um conto que tem muitas discussões interessantes a respeito da natureza da religião.
A seguir temos uma mockbiography, ou seja, uma biografia fictícia. Acompanhamos o trabalho de uma estudante de jornalismo que está obcecada pela vida de uma efêmera artista chamada Margô. A artista tem muitas coincidências em relação à protagonista, o que faz com que ela tenha uma forte identificação com ela e inicie o seu projeto de jornalismo. Com o avanço da investigação para a reportagem, pouco a pouco nossa protagonista vai descobrindo detalhes estranhos e suspeitos sobre a vida dela. Brincando com uma narrativa em primeira pessoa, nós vamos sendo envolvidos em uma rede de mentiras e detalhes confusos. Ao mesmo tempo, a protagonista passa quase a viver a vida dela. Desvendar esses mistérios se torna uma necessidade para ela. O detalhe aqui é como Brenda foi capaz de desenvolver uma narrativa investigativa muito boa e que prende o leitor até o final.
O último conto é o que eu menos gostei e dá nome à coletânea. Senti que a história ia por um caminho no começo, mas depois ela segue para outro diametralmente diferente do inicial. Temos uma protagonista que serve como uma espécie de porta-voz para um governo ditatorial. Imaginei que a narrativa iria por um tom mais político, destacando uma distopia na qual a protagonista estaria no olho do furacão. Mas, da metade para o final, o conto adota um clima estranho ligado à múltiplas dimensões. Uma espécie de voz passa a assombrar a personagem e a fazê-la questionar a realidade em que ela vive. Talvez possamos ir na direção de uma reflexão acerca do que é real para nós, daquilo que não somos capazes de ver. Mesmo assim, é uma mudança estranha em relação a uma proposta inicial. Reli o conto mais uma vez para pegar os detalhes, mas definitivamente não curti mesmo.
Enfim, a coletânea é muito legal e destaca as melhores qualidades da autora. É certo que em uma coletânea, vai ter algum conto com o qual o leitor não vai curtir tanto quanto com os outros. Entretanto, ressalto o alto nível das histórias e a ousadia da autora em brincar com as ferramentas de um escritor para criar algo diferente e único.
Ficha Técnica:
Nome: No Cosmo, Assim como no Coração Autora: Brenda Bernsau Editora: Auto-publicado Gênero: Ficção Especulativa Número de Páginas: 177 Ano de Publicação: 2018
Avaliação:
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