Mehboob e Rafik chegaram para um canteiro de obras aonde pretendem trabalhar como peões. Enquanto histórias e vidas se desdobram, um imenso prédio cresce verticalmente. Nesse pequeno mundo, vemos alegrias, tristezas, famílias, ambições e sonhos.
Sinopse:
Índia, dias de hoje, em um bairro residencial de uma cidade grande.
No canteiro de obras de um edifício, coexiste uma dúzia de personagens de todo o país: Ali, o jovem engenheiro inexperiente; Trinna, um capataz intransigente; Rafik, Mehboob e Salma, operários provincianos que sonham com um futuro melhor… além de Ganesh e seu bando de azulejistas rajastanis, hindus conservadores que engrossam as fileiras desse canteiro supervisionado por um jovem e rico construtor.
Este livro oferece uma visão microscópica da Índia contemporânea, onde línguas, religiões, castas, chefes e empregados se misturam numa precariedade sempre carregada de um ar tragicômico. E, à medida que o edifício se eleva laboriosamente, os sonhos e as ambições de cada um colidem e se entrelaçam nessa paisagem humana e urbana de tirar o fôlego.
Histórias de vida costumam ter o dom de nos impactar. Ainda mais aquelas que falam do cotidiano, do comum, daquilo que não é épico no geral, mas sim para aqueles que as vivem. Simon Lamouret nos traz uma narrativa cuja proposta possui uma simplicidade única, mas trata de tantos temas diferentes que poderia fazer nossa cabeça fritar. Essas pessoas que são os heróis desconhecidos de cada dia possuem toda uma riqueza de histórias, com os seus dramas pessoas, seus dilemas, seus obstáculos, dificuldades. Representam cada um de nós em sua essência, seja a que classe social pertençamos. Aliado a uma arte de tirar o fôlego, é uma das melhores HQs que li esse ano e está ficando cada vez mais e mais difícil montar uma lista com só 5 ou 10 títulos nela.
Essa é uma história que se passa em um canteiro de construção. Vários personagens passam por ela, mas começamos nossa jornada com Mehboob e sua esposa, além de seu primo Rafik que conseguem um trabalho no canteiro e o supervisor do local, Trinna, permite que eles façam um puxadinho temporário para permanecerem lá. O que veremos a seguir é a construção do edifício Alcazar onde várias vidas passam todos os dias desde os novos funcionários, além dos rajastanis contratados que curtem uma festa, o engenheiro de obras que sonha fazer um mestrado em Dubai, o fornecedor folgado que tem problemas familiares, o supervisor Trinna que saiu de baixo para se tornar um mestre de obras bem sucedido e o ganancioso dono do terreno que faz tudo por dinheiro. Enquanto o edifício cresce e vai ficando pronto, essas vidas se desenrolam em todas as suas glórias e quedas e o leitor vai poder acompanhar alguns momentos dessas pessoas.
A ideia por trás da composição da narrativa é genial. É daquelas histórias que passa pelas nossas cabeças "por que não pensamos nisso?". Claro que apesar da proposta simples por trás do roteiro, existe a genialidade do autor que foi capaz de criar um mosaico de vidas que se intercruzam naquele espaço. Aqui precisamos fazer aquele exercício de pensar fora da caixa porque o protagonista é o próprio Alcazar. Apesar de os acontecimentos se passarem nele, é a partir dele que a história se desdobra, início, meio e fim. Os personagens humanos são transitórios já que as pessoas podem passar pouco ou muito tempo ali. Temos algumas referências de personagens que passam mais tempo e nos guiam através das diversas histórias, mas mesmo estes deixarão o palco em algum momento. O corte temporal é o da construção do prédio. Quando ele está terminado, Lamouret dá um jeito de sabermos o que aconteceu aos personagens que passaram por ali. Outro ponto curioso é como o autor faz para separar os capítulos. Ele coloca splash pages com o momento específico da obra no qual o Alcazar se encontra.
E temos que falar da arte que está assombrosa. Os cenários são de cair o queixo dada a qualidade do traço de Lamouret. Cada detalhezinho recebeu o máximo de atenção seja as motocas, as lojinhas, o que é vendido nelas, os transeuntes que passam pela rua seguindo suas vidas, os vários personagens da trama que estão fazendo diversas coisas. É uma aula de composição de cena. Quero dar os parabéns para a editora Nemo por ter trazido essa obra de arte ao Brasil porque essa é uma daquelas HQs que podem ser usadas como base para qualquer artista. A HQ é toda trabalhada em tons básicos de azul, laranja e cores terrosas o que dá um estilo bem diferente a ela. Quando o leitor começa a observá-la, ela tem uma identidade características que define a arte sendo pintada nos quadros. Não apenas isso como a pesquisa feita sobre o cotidiano de uma cidade grande da Índia como Nova Délhi, Bombaim ou qualquer outra. Essas características estão presentes em pequenas coisas como os programas de televisão que a esposa de Mehboob gosta, as noitadas e até expressões típicas. A arte ajuda a dar forma às ideias.
Posso falar de inúmeros temas, mas queria começar com o forte tom crítico sobre a desigualdade social existente na Índia. E, apesar de estarmos observando uma história que se passa em um bairro residencial indiano, o Brasil não está longe dessa realidade. As condições em que a família de Mehboob vive são bem complicadas. Eles dão um jeitinho para conseguir tocar a vida, mas imaginem dormir e acordar todos os dias com uma lona sobre suas cabeças ou um puxadinho temporário que amanhã não será seu. É uma família que sonha um dia ter um teto só seu. E o mais curioso: Mehboob sonha em ir para o campo. Ele faz parte de todo um contingente de pessoas que migraram do campo para a cidade em busca de uma vida melhor, mas aconteceu exatamente o oposto. Perderam muito do pouco status social que tinham e agora vivem de favor de lugar em lugar. Esse é um sintoma dos tempos atuais que iremos perceber com mais força ao longo desta década com os migrantes retornando aos seus lugares de origem porque o Estado e as instituições não foram capazes de fornecer aquilo que eles precisaram. O abismo social só cresceu e os deixou ainda mais sem posses.
Ou a história do pobre Rafik, um garoto novo e cheio de vida que se comove quando o supervisor Trinna observa a dedicação que ele tem em seu trabalho e diz a ele que iria ensiná-lo o ofício para que um dia possa se tornar como ele. Rafik vê em uma promessa vazia a esperança de sair de sua condição pobre e alcançar novos voos. Mal sabe ele que esta é uma estratégia típica de pessoas do meio da hierarquia para criar um vínculo torpe de fidelidade quase familiar. Através de promessas vazias, a pessoa se torna escrava de um sonho que nunca virá a existir. E esses funcionários fazem de tudo para manter esse sonho vivo, mesmo que tenham que trair a confiança de seus iguais. Quando se descobre que essas promessas nunca serão realizadas e a ficha cai, o desespero toma conta e parece que toda a sua trajetória até ali não fez o menor sentido. É como uma bigorna caindo na cabeça.
Mesmo a obra tendo começado corretamente, vemos que aos poucos as coisas começam a ficar mais complicadas com os atrasos, os rearranjos, as modificações. Os materiais se tornam mais caros e o dono do terreno deseja lucrar o máximo possível com o que ele está construindo. É aí que o perigo começa e vemos as pequenas corrupções do cotidiano. É o mestre de obras que atrasa o pagamento dos funcionários, mesmo recebendo corretamente de quem o está pagando. É o dono do terreno que faz um pedido surreal ao engenheiro que concorda apenas para não contrariar o chefe. São os peões que, por melhores condições de trabalho, sabotam a obra. São os acontecimentos comuns que fazem parte de toda uma linha de produção que deveria funcionar corretamente, mas não é isso o que acontece. Isso é perceptível em uma cena onde Trinna observa o prédio ao lado que começou depois deles e está bastante adiantado. Por que será? O que eles fizeram de diferente? Contrataram mais funcionários? Modificaram a planta?
Sem falar no engenheiro Ali que foi contratado para verificar a segurança, a integridade e o andamento da planta do prédio. Um típico intelectual acadêmico que está trabalhando em um lugar que está aquém de suas capacidades. E que possui uma irritabilidade transportada para a maneira como ele se relaciona com os peões de obra. Ele é uma pessoa indócil e não consegue fazer amizades com ninguém. Isso porque a frustração está patente em seu olhar e na maneira como ele encara o que está fazendo. Seus sonhos estão além daquele pequeno espaço e ele sente que até seu chefe o está atrapalhando em alcançar seus objetivos. A questão que fica para ele é: o que fazer? Largar tudo, se arriscar e partir para o mestrado ou buscar uma estabilidade mesmo que precise engolir alguns sapos no meio do caminho? A caminhada dele é a jornada que cada um de nós que passou pela academia passa quando sai dela e se depara com um mercado de trabalho que não nos recebe de maneira gentil.
O Alcazar é uma HQ repleta de vivacidade, de histórias e de dramas pessoas. Ela toca fundo em nossos corações porque conta verdades. Nos expõe cara a cara com a vida cotidiana acontecendo bem diante de nossos olhos. E ela gera uma identificação, por menor ou mais adjacente que seja porque em algum nível narrativo passamos por aquilo que algum dos personagens viveu. Sejamos nós os peões esperançosos com um novo ofício, o engenheiro em busca de um sonho, o mestre de obras que demonstra sua competência, o malandro fornecedor de materiais ou o chefe ganancioso. Temos um pouco de cada um deles. O que posso dizer é que fiquei impressionado com essa HQ e fui capaz de lê-la avidamente por um dia inteiro e me esbaldar nessa linda obra de arte.
Ficha Técnica:
Nome: O Alcazar
Autor: Simon Lamouret
Editora: Nemo
Gênero: Ficção/Cotidiano
Tradutora: Renata Silveira
Número de Páginas: 208
Ano de Publicação: 2021
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