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Foto do escritorPaulo Vinicius

Resenha: "O Auto da Compadecida" de Ariano Suassuna

Começando o nosso projeto de ler Suassuna ao longo de 2020, nada como ser de um dos seus trabalhos mais famosos: Auto da Compadecida. A famosa história de João Grilo, o mentiroso e seu amigo Chicó que vão se meter em uma encrenca enorme. Será que João Grilo escapará da punição divina por suas mentiras?


Sinopse:


O "Auto da Compadecida" consegue o equilíbrio perfeito entre a tradição popular e a elaboração literária ao recriar para o teatro episódios registrados na tradição popular do cordel. É uma peça teatral em forma de Auto em 3 atos, escrita em 1955 pelo autor paraibano Ariano Suassuna. Sendo um drama do Nordeste brasileiro, mescla elementos como a tradição da literatura de cordel, a comédia, traços do barroco católico brasileiro e, ainda, cultura popular e tradições religiosas. Apresenta na escrita traços de linguagem oral [demonstrando, na fala do personagem, sua classe social] e apresenta também regionalismos relativos ao Nordeste. Esta peça projetou Suassuna em todo o país e foi considerada, em 1962, por Sábato Magaldi "o texto mais popular do moderno teatro brasileiro".





Só sei que foi assim


Ariano Suassuna é um daqueles imortais da literatura brasileira que mereciam mais espaço. Sim, Auto da Compadecida já ganhou dezenas de versões, adaptações, alterações, manipulações e o que mais ões vocês pensarem. Mas, Ariano é muito mais do que isso. Mas, ué, por que então começar seu projeto Suassuna por Auto da Compadecida? Oras, por que eu tenho que chamar a sua atenção, caro leitor. E, como o livro é um clássico conhecido por muita gente, o leitor amigo que acompanha o Ficções vai estranhar a existência dele em um blog sobre fantasia, terror e ficção científica. A minha resposta é bem simples: Ariano é um daqueles autores que flertam com o realismo mágico usando o regionalismo para inserir elementos fantasiosos em sua narrativa. Quase todas as histórias dele tem um pé nisso: Auto da Compadecida (com o julgamento celeste e outras coisinhas mais), o Romance da Pedra do Reino, O Santo e a Porca. O inexplicável está ali não para mover a narrativa, mas para servir como extrapolação dos personagens.


Bem, estamos tratando de uma peça de teatro. Então, logo de cara preciso dizer que essa não é a maneira ideal de se ter contato com a história. Nem o cinema é. Auto da Compadecida é algo criado tendo a commedia dell'arte como inspiração. Em seu seio, a narrativa é para ser apreciada ao vivo com a nossa participação observando diretamente as peripécias de João Grilo. Esse é o ideal. Mas, a forma como ela foi inserida no papel permite ao leitor imaginar em parte como seriam as passagens do livro. Ele possui estruturalmente três atos: a apresentação, o conflito na Igreja e o julgamento. Nesses três atos temos as vozes dos personagens e em itálico estão as ações que cada um deles deve fazer durante a apresentação.


"É verdade, o cachorro morreu. Cumpriu sua sentença e encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca de nosso estranho destino sobre a terra, quele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo morre!"

A nova edição da Nova Fronteira está caprichada. Repleta de imagens que remetem à literatura de cordel, com uma ótima diagramação, uma introdução de Henrique Oscar e um posfácio de Bráulio Tavares. O texto de Henrique Oscar é bom para entendermos parte dessa inspiração no teatro italiano, embora Suassuna seja mais livre em sua concepção de cena, de personagens e de enredo. O Palhaço funciona como narrador, embora ele participe de algumas cenas. João Grilo tem algumas características do Arlequim, embora ele tenha suas raízes mesmo no sertanejo enquanto que Chicó é um personagem característico do Suassuna. Os diálogos são maravilhosos e Suassuna trata com sarcasmo dos problemas tão típicos do Brasil: o coronelismo, a desigualdade social, a miséria do sertão, a religiosidade. Todas estão amalgamadas em um texto que não tem a menor pretensão de se levar a sério, apesar da riqueza narrativa e dos temas imbricados no fundo. O timing cômico de Suassuna é preciso, tinha vários momentos em que eu me pegava rindo horrores das tiradas do personagens. Até Severino consegue mandar algumas tiradas na ponta da língua.


O nordeste de Suassuna


A narrativa toda se passa em poucos cenários: a Igreja, um pedacinho da cidade de Taperoá em frente à Igreja e no julgamento. Mesmo assim, através dos personagens a gente consegue pegar a essência do nordeste brasileiro. Seja na malandragem de João Grilo ou na ingenuidade de Chicó, nos abusos do coronel ou no jeito corrupto do padre e do bispo. Tudo está ali presente. Não apenas isso, como o livro ganha aquele contorno de atemporal onde ele pode ser lido em qualquer época sendo que os problemas se repetem mesmo nos dias de hoje. O estilo de literatura de cordel está também presente, pois o encadeamento de palavras é bem ritmado e compassado, parecendo em alguns momentos ser rimado. Isso está presente nas falas dos personagens que não só formam suas características, como conseguimos ouvir ecos de suas vozes, tamanho esse ritmo e compasso.


"Deixe de latomia, Chicó, parece até que nunca viu um homem morrer! Nisso tudo eu só lamento é perder o testamento do cachorro!"

Os personagens são bem delineados junto dos problemas que eles provocam. Por exemplo, a dupla principal formada por João Grilo e Chicó representam aqueles que colocam a história em movimento. Grilo é o típico malandro que tem uma espécie de vendetta com o seu chefe, o dono da padaria por causa de um momento em que ele passou doente e ninguém foi ajudá-lo. Chicó é aquele cara que inventa as histórias mais absurdas, como a do pirarucu que o arrastou por três dias e três noites. O protagonista representa a população com vontade de se rebelar contra a tirania das elites. Algumas falas dele mostram isso, com o patrão abusivo, o coronel que desmanda, o padre corrupto. Aquele grito entalado na garganta. Ao mesmo tempo, ele representa como o brasileiro dá o seu jeitinho para se safar dos problemas.


Chicó e sua ingenuidade são bem tratadas na narrativa. Ele é um personagem covarde, mas está ali por seu amigo. Mesmo quando a situação aperta, fica indeciso entre o ajudar e o cair fora. Grilo força determinadas situações por causa de seu temperamento. A gente consegue ver parte dessa rebeldia durante o julgamento, e é a Compadecida quem trata de puxar a orelha dele e colocá-lo com os pés no chão, mas buscando compreender de onde vem tudo aquilo. Embora João Grilo tenha uma força protagonística clara, Chicó foi o meu personagem favorito da história. Ele conseguiu me fazer imaginar o sertanejo em si. A ideia do homem simples do interior cuja mente ingênua (não confundir com tolice) guia seus atos.



Vários temas e características são muito brasileiros na escrita de Suassuna. Esse é o tipo de livro que tem a identidade escrita na testa. A questão da desigualdade social está nas falas e nos trejeitos do personagens. O padre que não aceita enterrar o cachorro da mulher do padeiro porque ele tem preguiça. Mas, assim que ele descobre que o cachorro na verdade pertence ao coronel (uma mentira conveniente de João Grilo) ele muda de ideia e enterra o bichinho em latim. Tão característico de nossa sociedade contemporânea o tratar diferente o próximo. O sempre esperar algo em troca. Quando alguém não tem o que oferecer, ela não possui utilidade. E isso se conjuga, por exemplo, com a postura do padeiro que espera que Grilo faça o seu trabalho sem reclamar. E quando o personagem expõe a sua indignação, o padeiro o trata como um ser inferior. E o mais curioso é a hierarquização existente na narrativa com o coronel --> padeiro e o bispo --> padre.


O coronelismo também está presente na narrativa. Este foi um "fenômeno" histórico ocorrido no Brasil, segundo muitos autores, entre o final do século XIX até a primeira metade do século XX. A figura do coronel era um fazendeiro rico local, que empregava sua força para-militar (os jagunços) e o seu poder financeiro para controlar a vida da sociedade próxima à sua fazenda. Seu poder era reforçado pela intimidação ou pela troca de favores. As pessoas que viviam sob o seu controle eram obrigadas a votar em políticos que eram apontados pelo coronel. O político eleito garantia que o poder da União estaria a serviço do coronel quando ele precisasse. Era uma rede de controle através da corrupção que foi efetiva durante um bom tempo no Brasil. O coronel Antônio Moraes é esse homem na narrativa de Suassuna. Se ele não consegue as coisas através de seu poder financeiro, ele vai empregar da intimidação para isso. Sua figura é temida dentro daquele pequeno espaço onde seus tentáculos alcançam.


Bem, onde está a fantasia na narrativa? Aqui, o mais claro é o julgamento dos personagens por Manuel (a figura de Jesus Cristo). Ele funciona como alguém que está julgando a moral deles diante dos acontecimentos da história. O Encourado e a Compadecida funcionam como os dois lados da balança: enquanto o demônio tenta apresentar as coisas a partir da letra fria da lei, a Compadecida é piedosa e encontra brechas para tudo o que todos fizeram. Os personagens representam a interpretação precisa e a livre interpretação, se pudermos empregar algo mais simbólico. Não há como levarmos as coisas sempre a partir da precisão, principalmente em um lugar árido como o sertão. A vida das pessoas é mais importante; é preciso entender de onde elas vem e por que elas são como são. É óbvio que a Compadecida sabe o quanto João Grilo é mentiroso. Mas, ela escolheu um outro caminho para lhe dar ensinamentos. Se o personagem vai ou não ouvi-la, aí já é uma outra história. Mas, ela cumpriu o seu papel como alguém presente em sua vida.


"Muito obrigado, João, mas agora é sua vez. Você é cheio de preconceitos de raça. Vim hoje assim de propósito, porque sabia que isso ia despertar comentários. Que vergonha! Eu, Jesus, nasci branco e quis nascer judeu, como podia ter nascido preto. Para mim, tanto faz um branco como um preto. Você pensa que eu sou americano para ter preconceito de raça?"

Um mestre na arte de contar histórias, mesmo as de improviso, Suassuna nos conta a história de um dia na vida de um sertanejo. Mesmo com todas as dificuldades que lhe são impostas pela sociedade, João Grilo e Chicó sabem aproveitar a vida da melhor maneira. Cabe a cada um de nós aproveitar esse clássico do gênero e entender como Suassuna foi importante para a arte popular do nordeste e do Brasil como um todo. Como ele foi capaz de criar a identidade do malandro, do cangaceiro e mostrar as agruras pelas quais o povo brasileiro sofre, mas sem perder o humor tão característico de suas histórias.











Ficha Técnica:


Nome: Auto da Compadecida

Autor: Ariano Suassuna

Editora: Nova Fronteira

Número de Páginas: 208

Ano de Publicação: 2018 (nova edição)


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