Em uma coletânea apavorante de histórias de terror, Oscar Nestarez abraça os recônditos mais escuros do ser humano. Desde uma viagem que parecia reconfortante ao interior a um autor frustrado que se vê vítima de seus próprios escritos até um casal de namoradas que descobre que a Jamaica é mais do que só músicas e ganja.
Sinopse:
Em sua nova coletânea, Oscar Nestarez convida você a explorar os recantos sinistros do cotidiano e da mente humana. A jornada começa com um escritor amargurado entregando-se a fantasias malévolas, e conclui-se com uma assustadora viagem ao Haiti. No caminho, você encontrará uma jovem atormentada pelo luto, uma vampira entediada com a eternidade, um hedonista com planos macabros e outras personagens perturbadoras ― que continuarão por perto mesmo depois do ponto final, povoando o escuro ao seu redor.
AVISO DE GATILHO: Violência doméstica, estupro, abuso sexual, crueldade com animais e assassinato.
Antes de passar para a resenha, queria só alertar os leitores e até o próprio autor de que este é um gênero de histórias que não me agradam. São temáticas que costumam me incomodar e não é o tipo de material que saio em busca. Prefiro um terror mais voltado para a exploração do medo e para o psicológico do que um foco no gore, no body horror ou até em temas mais pesados. Então peço desculpas se a forma que for apresentar a resenha não contemple todos os espectros da história. Isso de forma alguma tira os méritos da obra, escrita por um grande escritor, que tem o domínio pleno de suas habilidades. E considero importante para um produtor de conteúdo deixar bem claro as suas preferências, demonstrar o que não curte para evitar uma análise enviesada ou injusta.
Em um aspecto mais geral, o livro é formado por contos e histórias curtas, não mais do que vinte páginas o maior. Na primeira metade, ele é formado por contos um pouco mais longos e mais para a frente as histórias tendem a ser mais curtas. Há uma mescla de produções feitas para este livro e histórias publicadas em outras coletâneas dispersas. Ou seja, é uma boa para ter um apanhado de histórias do Nestarez reunidas em um só lugar. É um livro necessariamente de terror, sendo que não há aspectos do fantástico ou do scifi nele. É bastante diferente do que o Duda Falcão faz em suas coletâneas com um mix; o autor curte essa exploração do coração humano. Aí fica um aviso sobre os gatilhos presentes no livro: levem a sério. Não é brincadeira. Destaco isso porque às vezes pode passar a impressão de que estamos exagerando e a história nem é tão apavorante assim. Spoiler: é. Bastante. O ponto comum entre as histórias é que ele tem um tremendo domínio sobre o que nos incomoda. A maior parte das narrativas começa te situando junto do personagem e apresentando qual é o dilema do mesmo. Aos poucos o estranhamento vai crescendo até chegar ao ponto de virada, onde parece que o balde é chutado e tudo explode no personagem. Me agrada ver o quanto o autor tem um bom timing disso: o terror não aparece tarde ou cedo demais. Está sempre naquela conta exata. Em algumas histórias, a virada para o bizarro acontece na metade da história... outras vezes lá no finalzinho como em O Breu Povoado, que dá título ao livro.
Desde o começo Nestarez não se arroga de tratar de assuntos polêmicos. Em O veneno, o antídoto e o veneno, primeiro conto da coletânea, somos colocados diante de um escritor famoso que tem um certo desprezo pela sociedade. Considerando-se acima de todos após a publicação de um livro que ele entende como sendo um marco, se incomoda em ter de ir fazer palestras enfadonhas e sessões de autógrafos tolas. É um personagem marcadamente narcisista e hedonista, que tem uma atração sexual por... crianças. Sim, é isso o que vocês estão lendo. Em uma das palestras que ele faz, dois meninos acabam se interessando demais pela sua fala, e são verdadeiros fãs do autor. É óbvio que ele vai se aproveitar da deixa para tentar ao menos se divertir neste lugar ermo. Só que o que ele não vai esperar é pela surpresa que ele terá. Nestarez inverte a noção de inocência ao nos apontar uma noção que temos como lógica, mas que nesta história não é bem assim. As forças malignas podem estar presentes nos corações mesmo dos inocentes. É aí que os véus caem ao chão. Este é um dos contos mais pesados apresentados pelo autor (tem outros que são bons competidores), mas o gore presente aqui, além das cenas de sexo bizarro tendem a incomodar leitores mais sensíveis. Mesmo eu que não me incomodo com tanta facilidade, segurei um pouco a respiração em certos momentos.
Nestarez gosta de colocar os personagens em lugares diferentes e tem um apreço pela região do Caribe. Duas histórias se passam lá: Depois da brisa (na Jamaica) e O Breu Povoado (no Haiti). O primeiro deles é narrado em primeira pessoa por uma mulher que está tentando se divertir e passar um tempo agradável curtindo música e fumando uma ganja. Até que ela conhece a encantadora Nour com quem ela desenvolve uma tórrida relação. As duas tem muitas coisas em comum e isso favorece uma boa química entre elas. Mas, Nestarez nos mostra que mesmo uma sociedade aberta como a jamaicana não tolera relacionamentos homossexuais. E isso elas sentirão na pele quando conhecerem um lado menos estrelado deste lugar paradisíaco. Neste conto o que importa é a virada narrativa que é apresentada de uma forma sutil até ir tomando mais forma pouco a pouco. De repente conhecemos um homem misterioso chamado Frazier que toma uma postura bastante avaliativa sobre elas. É esse o gatilho para as transformações. Para mim O Breu Povoado é o melhor conto do livro. O autor consegue realmente nos colocar em um clima de encantamento e assombro. O protagonista está indo visitar o seu amigo Rubens que trabalha como diplomata no Haiti. Só que tem um detalhe: o personagem tem uma certa afinidade pelas histórias sobre o vodu, uma religião misteriosa que teve sua origem na ilha. Ao conhecer mais a ilha de Porto Príncipe, somos levados a um ambiente que parece colorido durante o dia, mas que toma uma outra visão à noite. E explorar estes cantões onde mesmo o breu é povoado por seres e pessoas além do natural pode não ser uma boa ideia. Este conto consegue fazer com que o leitor seja capaz de imaginar o cenário onde a história se passa. E é curioso que mesmo quando tudo adota um visual mais sombrio e escuro, somos capazes de enxergar com mais clareza aquilo que está se sucedendo.
Frequentemente Nestarez costuma usar animais em sua narrativa. Um dos contos chamado Gato no Vácuo me fez lembrar bastante Edgar Allan Poe e seu conto O Gato Preto. Mas, Nestarez faz a sua própria leitura partindo de um casamento balançado por uma tragédia até chegar na estranheza. O casal está tentando a todo custo ter um filho e são pessoas que se amam profundamente. Percebemos o carinho e o companheirismo entre eles. Mas, quando chega a notícia de que a esposa não é capaz de conceber é como se um enorme peso descesse sobre a cabeça de ambos. Ela entra em um profundo quadro de depressão e o marido tenta tocar a vida em frente. Uma decisão que, inicialmente, parece ser doce e gentil acaba se revelando o elemento que faltava para que tudo estourasse de vez. Nesse conto o autor vai aos poucos nos apresentando uma situação cujo psicológico vai degringolando de uma forma que o marido não consegue entender. Alguns sinais são apresentados aqui e ali, mas ele não entende o motivo de sua apreensão. O final é desolador e bizarro. Fora de Foco é outro dos contos que explora a relação dos personagens com animais. A protagonista é uma mulher viciada em trabalho e que depois de um burnout decide tirar um tempo em um lugar isolado para recarregar as baterias. Um lugar que parece idílico a princípio vai se revelando perigoso. O companheiro da protagonista é o cachorrinho Shenzi, que funciona como um alento para dias tão complicados. A conexão entre ela e Shenzi é muito próxima, quase a de mãe e filho. Este é um conto que bebe bastante da vertente do folk horror, de filmes como A Bruxa, que nos coloca em locais isolados e com pessoas que tem um ar estranho para quem vive em cidades maiores.
No geral, esta é uma coletânea muito boa. Principalmente para quem curte essa vertente do terror mais pesada. Nestarez sabe o que está fazendo e te guia por alguns temas bastante complicados de serem abordados. Como disse antes: a mim não é um tipo de coletânea que me agrada, mas tenho que ser justo e valorizar o trabalho dele. Tem um ou outro conto que não curti por não ter entendido exatamente aonde o autor queria chegar como Uma Oferenda ou Lupus Dei. Entendi o esquema geral da história, mas ela não disparou um eco para mim. Como se alguma coisa tivesse faltado, embora dos dois, Uma Oferenda é um conto metodologicamente bem legal com duas visões de mundo se chocando. De toda forma é uma coletânea que atende à sua proposta muito bem.
Ficha Técnica:
Nome: O Breu Povoado
Autor: Oscar Nestarez
Editora: Avec Editora
Número de Páginas: 128
Ano de Publicação: 2022
Avaliação:
Link de compra:
*Material recebido em parceria com a Avec Editora
Apesar da alegação de ser pouco afeito a literatura de terror mais visceral, gostei da resenha. Eu comprei esse livro em maio de 2022 (eu não guardei de cabeça, verifiquei agora na Amazon) e até hoje não li por causa do backlog. Na verdade comprei mais como apoio a escritores nacionais do que ler no curto ou médio prazo. Entretanto, a sua resenha teve o mérito de suscitar o meu interesse em lê-lo, pois me lembrou de dois escritores que adoro, o Clive Barker e o Cesar Bravo.