Marco está dando um tempo em sua profissão como fotógrafo de guerra. A paixão pelo que ele faz desapareceu. Nesse turbilhão de emoções, ele conhece um senhor próximo de sua casa no campo que parece ter conhecido seu pai. Muitas mudanças aguardam a vida dele, mas tudo o que Marco deseja é que as coisas permaneçam iguais.
Sinopse:
Vencedora do prêmio de Melhor Álbum no Festival de Angoulême de 2004 e adaptada para o cinema em 2015, O Combate Cotidiano é a obra mais pessoal de Manu Larcenet (O Relatório de Brodeck), um dos maiores nomes dos quadrinhos franceses da atualidade.
Esta é a história de Marco, um jovem fotógrafo de guerra que, cansado de registrar horrores, decide dar um tempo no trabalho e troca a cidade grande pelo campo, com o intuito de fazer as pazes consigo mesmo e com o mundo. Após dispensar seu terapeuta, com quem se consultou durante anos para tratar de ansiedade e ataques de pânico, sua principal companhia nessa nova fase é um gato temperamental chamado Adolf.
Entre visitas esporádicas ao irmão caçula, aos pais idosos, à veterinária e aos amigos de um velho estaleiro, Marco vive uma história comovente e profundamente humana, que propõe uma reflexão tocante sobre amadurecimento, autoaceitação e as pequenas coisas da vida, com muitas doses de humor, introspecção e sensibilidade.
Publicada originalmente na França pela editora Dargaud em quatro volumes, entre 2003 e 2008, a editora Pipoca & Nanquim agora traz esta obra-prima dos quadrinhos contemporâneos em uma bela edição integral, com 252 páginas coloridas e impressas em papel offset 90g, formato grande (19,5x28 cm) e capa dura.
Viver é estar em movimento. Mas, para Marco, estar em movimento é ruim. Ele gosta das permanências, de ter o controle sobre as coisas. Mudar pode significar precisar se adaptar e isso é um saco para ele. Vamos acompanhar, guiados por Manu Larcenet, a vida de um fotógrafo de guerra que não deseja mais tirar fotos desse tipo. Ao mesmo tempo, Marco sofre de uma terrível crise de ansiedade causada por toda uma série de traumas que ele tem. Morando afastado dos centros urbanos, ele busca resolver seu problema, mas parece que a vida não quer dar descanso a ele. Uma revelação pessoal de seu pai vai fazer com que ele encare anos de ausência paterna. Um novo amor em sua vida irá obrigá-lo a tomar decisões que nem sempre lhes serão confortáveis. E uma pessoa que passa a fazer parte de sua vida tem uma estranha conexão com ele que irá deixá-lo desconfortável. Marco irá travar o combate cotidiano e nesse meio tempo quem sabe se tornar uma pessoa melhor.
Esse é um baita quadrinho. Irretocável em enredo e arte. Mas, falemos primeiro do enredo que é bem legal. É uma narrativa de vida de uma pessoa que tem uma série de problemas a serem resolvidos. Marco é um homem falho e precisa lidar com os esqueletos de seu armário. Larcenet nos traz uma história de um homem comum, mas que é tão interessante que não nos cansamos de acompanhá-la. Os altos e baixos, as vitórias, as derrotas, os medos. É uma narrativa contada com muita sensibilidade ao longo de quatro capítulos que compõem essa edição integral. Entre os capítulos existem alguns saltos temporais, apresentando novos problemas ou apenas os velhos que ainda não foram resolvidos. A narrativa do autor é fácil de compreender e os personagens de apoio são fascinantes. Entre os principais estão Emilie, o amor de sua vida, seus pais e seu irmão. As partes são bastante fluidas e o leitor vai se pegar devorando as páginas, desejando saber o que vai acontecer a seguir. Em vários momentos, o autor vai te pegar pelo contrapé e fazer você se emocionar. Sabe aquele momento inesperado em que o personagem tem um insight ou toma uma decisão importante e lágrimas caem sem você querer? É por aí.
A arte de Larcenet é bem diferente dos lápis em PB ou aquela coisa mais claustrofóbica de O Relatório de Brodeck. Até porque as propostas dos quadrinhos são diferentes e o autor ajustou sua arte à necessidade e à temática da HQ. Nada do realismo, mas sim algo mais caricato e colorido. Pode surpreender quem se apaixonou pelo lápis escuro de seu outro trabalho, mas confesso que não vi problema algum. Esse colorido extremo contrasta com as temáticas pesadas da HQ. Parece que o autor quis amenizar um pouco o peso presente nas palavras. Ele alterna entre estilos de arte de acordo com as situações. Vez ou outra ele emprega o seu traço mais realista ao nos mostrar cenas que parecem retratos ou cenários de guerra. Em outros, o personagem está sofrendo com uma crise de ansiedade e ele altera a palheta de cores para algo totalmente vermelho e o personagem enxergando apenas sombras. É a perspectiva de alguém passando por esse momento ruim. O design de personagens é fruto do estilo francês de BD em linha clara, com bastante simplicidade nos traços, mas muita personalidade. Larcenet faz seus personagens serem únicos e bastante expressivos. Os cenários de fundo são lindos. Dá até um contraste na simplicidade dos personagens com um grau de detalhamento grande. A preocupação em passar ao leitor as sensações que cada ambiente transmite. Não esperem quadros grandes porque essa não é a proposta. Se posso comparar com algum outro trabalho, imaginem Verões Felizes e a arte expressiva de Jordi Lafevre. Apesar de que os dois artistas possuem inúmeras diferenças.
Por onde começar? São tantas coisas acontecendo. Vamos começar pela trava artística de Marco. E ele está assim por um motivo bem fácil de ser explicado. O trabalho que ele estava fazendo era doloroso demais para ele. Representar crianças sendo mortas, inocentes assassinados por armas de fogo, a miséria de locais como Uganda onde ele esteve. Isso deixou marcas em seu coração. Ao voltar para casa havia inúmeros trabalhos o aguardando e ele simplesmente procrastinava dizendo em voz alta algo que nem ele acreditava: que ele voltaria em breve com o seu trabalho. À medida em que os meses passam isso vai ficando cada vez mais remoto de acontecer. As fotos que ele passa a tirar são cotidianas demais para que algum jornal ou revista aceitasse. Marco é um fotógrafo cuja arte se materializa a partir de como ele se enxerga no lugar da pessoa a quem ele está fotografando. Quando ele vai fazer um trabalho sobre o Cais 22, um estaleiro onde seu pai trabalhou por boa parte de sua vida, aquilo ali era sua segunda casa. As pessoas que estavam ali o viram crescer, brincar nos arredores. As fotos que ele tira dali captam a naturalidade e a essência dessas pessoas. Mas, como ganhar dinheiro com fotos sobre pessoas que ninguém quer saber nada a respeito? Ele se encontra em um dilema moral de usar a sua arte para ganhar dinheiro e deixar de lado seus sentimentos ou viver uma situação difícil e manter seu orgulho? Passamos por esses questionamentos em alguns momentos de nossas vidas. Eu mesmo já passei várias vezes. Cada um de nós vai encontrar uma resposta diferente para isso.
Mas, existe algo mais complicado para Marco que é o medo que ele tem de mudanças. Marco definitivamente prefere a estabilidade e quando Emilie chega em sua vida, ela transforma tudo por onde passa. Isso porque, em uma relação entre duas pessoas, os dois lados precisam ceder para que a relação avance. Por exemplo, um dos grandes dilemas da primeira parte é que Emilie quer que Marco se mude para mais perto do local onde ela trabalha. Como Marco mora longe de um centro urbano, se torna difícil para ela ir até lá o tempo todo. Fora que passa a impressão de que ela é apenas uma visita passageira e nada mais. Marco reluta com essas mudanças mínimas, e é então que ele se dá conta de que pode perder Emilie caso não repense seus valores. A vida é transformação. Por mais que a gente não queira, somos colocados para irmos contra o que desejamos. Podemos simplesmente ficar no mesmo lugar e perder nossa felicidade ou aceitar as coisas como são. É um tipo de reflexão que só entendemos por completo quando temos mais idade e passamos a olhar de maneiro retrospectiva. Hoje sei que sou uma pessoa diferente de antes do meu casamento, fruto de uma esposa que me fez tomar decisões que nem sempre gostei. Mas que fazem parte da vida.
A relação de Marco com seu pai também é fruto de uma série de traumas que ele tem. Seu pai serviu na Argélia durante vários anos e voltou marcado pela violência que viu lá. Esteve sob o comando de um homem que acabou obrigando-o a ver e sentir coisas que ele não deseja. Quando seu pai retornou, era um homem diferente e acabou por se fechar em uma vida simples e contemplativa. Sua relação com seus dois filhos ficou abalada. A sujeira da guerra ficou em suas mãos e ele já não via mais o ser humano com os mesmos olhos. O diário que ele acaba deixando como seu legado é uma prova disso. Anotações de coisas completamente banais ou uma estranha coleção de rolhas. O que isso significa? Qual é o sentido disso? Fato é que enquanto Georges decidiu se afastar totalmente de seu pai, Marco decidiu permanecer ainda no seio familiar e tentar se comunicar com seu pai e sua mãe. Não só isso. Com a idade se passando, aquela figura que tínhamos como uma fortaleza, começa a mostrar suas fragilidades. E Marco já não sabe mais o que sentir por seu pai. Diga-se de passagem, essa conexão mal sucedida com seu pai, aliado aos problemas oriundos de seu emprego e a pressão por mudanças fazem a crise de ansiedade dele se agravar. Mesmo atendido por um psicólogo, ele não consegue lidar com suas questões. E isso vai ser um empecilho para uma vida normal.
Outras questões de natureza política também aparecem na HQ. Por exemplo, Marco é um cara cujo espectro político se situa mais à esquerda no país. E ele precisa ver o crescimento da extrema-direita em seu país com as eleições acontecendo e uma figura bizarra como o velho Le Pen (pai de Marine Le Pen que se tornou uma figura importante da extrema direita francesa) ganhar cada vez mais espaço. E a eleição de um conservador como Jacques Chirac entendida como um alívio. Ele não consegue entender como um pessoal corrupto e maluco consegue se eleger a cargos importantes. É quando ele tem contato com o pessoal do Cais 22 e percebe a necessidade que eles tem de alguma coisa nova que chacoalhe a vida deles. O trabalho no estaleiro vem se tornando cada vez menos essencial e o medo de perder seus empregos e seu baixo ganho pão se torna ainda mais evidente. Bastounet é uma dessas pessoas; alguém que Marco conheceu a vida toda e se surpreendeu quando ele revelou que votou em Le Pen nas eleições. Processo semelhante nós vivemos quando Bolsonaro foi eleito e descobrimos que pessoas próximas a nós passaram a apoiar alguém cujos interesses eram escusos. A questão toda está em uma transformação tão necessária na vida dessas pessoas. Uma necessidade de olhar para uma luz de esperança no horizonte.
Há tanta coisa a se dizer sobre O Combate Cotidiano. Por exemplo, o esquerdomacho estúpido que Marco idolatrava e se revelou um perfeito babaca ou o senhor que ele passou a encarar como alguém que poderia ouvir seus problemas, mas escondia um segredo terrível ou a vida cotidiana de seu irmão que se transformou com o passar dos anos. Todas são histórias emocionantes e surpreendentes que Larcenet traz para nós nesse quadrinho. Fica o meu convite para que todos o leiam e o apreciem. Certamente vocês serão tocados pela sensibilidade do autor. Mais um para entrar na minha lista de melhores do ano.
Ficha Técnica:
Nome: O Combate Cotidiano
Autor: Manu Larcenet
Editora: Pipoca e Nanquim
Gênero: Ficção
Tradutor: Fernando Paz
Número de Páginas: 252
Ano de Publicação: 2023
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