Na distópica Gilead, as mulheres são alijadas de direitos e tornam-se posse do Estado teocrático - são objetificadas, marcadas e exploradas, e Offred é uma delas.
Sinopse:
Escrito em 1985, o romance distópico O conto da aia, da canadense Margaret Atwood, tornou-se um dos livros mais comentados em todo o mundo nos últimos meses, voltando a ocupar posição de destaque nas listas do mais vendidos em diversos países. Além de ter inspirado a série homônima (The Handmaid’s Tale, no original) produzida pelo canal de streaming Hulu, o a ficção futurista de Atwood, ambientada num Estado teocrático e totalitário em que as mulheres são vítimas preferenciais de opressão, tornando-se propriedade do governo, e o fundamentalismo se fortalece como força política, ganhou status de oráculo dos EUA da era Trump. Em meio a todo este burburinho, O conto da aia volta às prateleiras com nova capa, assinada pelo artista Laurindo Feliciano.
Alerta de gatilho: Violência e estupro.
Gilead está logo ali
"Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida”
(Simone de Beauvoir)
Os direitos das mulheres sempre foram atacados, isso não é novidade alguma. A verdade é que evoluímos muito pouco na nossa caminhada de mais de um século de reivindicações, e a prova disso está nos jornais de cada dia: violência doméstica, feminicídio, assédio sexual, abuso, estupro, salários mais baixos e pouquíssima representatividade no alto da pirâmide socioeconômica e política; mais recentemente, no Brasil, o aborto voltou a ser radicalmente rechaçado pelos conservadores maniqueístas que lutam para manter um sistema desigual e negligente.
Quando O Conto da Aia reflete sobre a condição da mulher em uma sociedade patriarcal, conservadora e fundamentalista, os horrores contidos nas páginas podem chocar os mais ingênuos, mas não há nada lá de tão distópico se comparado à era de extremos que vivemos. A eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos, reacendeu o debate em torno do livro, que automaticamente entrou para a lista de mais vendidos e, desde então, mantém sua posição, e não é à toa.
"Nada muda instantaneamente: numa banheira que se aquece gradualmente, você seria fervida até a morte antes de se dar conta."
Margaret Atwood extrapola a realidade para pensar nas consequências que as coisas poderiam ter caso seguissem por um rumo de radicalismo e ódio - é a ficção especulativa da qual se tornou uma das maiores referências da literatura contemporânea. Porém, as escolhas que estamos presenciando, que buscam silenciar e anular a mulher, a população LGBTQIA+, o movimento negro e todas as demais minorias, sugerem que Gilead pode ser tão real quanto se temia.
O Conto da Aia
Com a popularidade crescente do livro e da série da Hulu, The Handmaid's Tale, o público criou certa familiaridade com a história da Offred, mesmo sem realmente conhecê-la, e percebo que isso choca um pouco os fãs que decidem ler o romance após ter esse contato midiático com O Conto da Aia. Apesar de a série ser excelente e contar com a consultoria da própria Margaret Atwood - o que tornou o desenrolar dos eventos pós-livro muito verossímeis e plausíveis -, eu vou me deter em analisar apenas o livro e tentar adentrar um pouco nas entrelinhas e na engenhosidade da escrita da Atwood.
O Conto da Aia é um romance que se encaixa entre a distopia e a ficção científica especulativa narrada em primeira pessoa pela protagonista Offred. Esse não é o nome dela; as mulheres consideradas férteis, com potencial para gerarem bebês saudáveis, foram sequestradas, destituídas de bens materiais, família e inclusive de seus nomes e tornaram-se propriedades de Gilead em uma tentativa de conter os avanços dos problemas com fertilidade e natalidade na nova nação, que representa uma boa porção do território dos Estados Unidos.
Toda a ambientação e as informações fornecidas são passadas ao leitor de forma lenta, picotada e um pouco desconexa, sob o olhar bastante restrito da Offred. Pouco a pouco, esses pedaços desencontrados de dados sobre Gilead vão se juntando, mas a narrativa exige uma interação contínua com o leitor para que o panorama geral possa se descortinar. Digo isso porque a narrativa de O Conto da Aia não está pronta para o leitor, não é simples e, em muitas ocasiões, o não-dito é ainda mais importante do que Offred consegue expressar.
Offred, aliás, é uma personagem muito marcante. Através de suas memórias, descobrimos um pouco sobre quem ela foi antes do golpe de Estado, sobre os Estados Unidos e a crise que levou à ascensão de um governo militarizado e autoritário, e passamos a enxergar Gilead da mesma forma como ela vê. Offred é uma inconformada, uma mulher questionadora e bastante sarcástica, atributos essenciais para sua sobrevivência enquanto indivíduo. Enquanto todas as mulheres são brutalmente suprimidas a um sistema de castas composto por esposas (de azul), econoesposas (de verde, esposas pobres que se submetem à servidão) e aias (de vermelho), e, portanto, se anulam enquanto mulheres e enquanto pessoas, Offred resiste e cria pequenas revoluções das quais se orgulha, como guardar um pouquinho de manteiga escondido.
"Eu me ajoelhei para examinar o piso do armário e lá estava, escrito em letras minúsculas, bem recentes, parecia, riscadas com um alfinete ou talvez apenas uma unha, no canto, onde caía a sombra mais escura: Nolite te bastardes carborundorum."
Dizer tudo isso com tão pouco, com entrelinhas, com meias palavras e subjetividade é o que torna a escrita da Margaret Atwood um marco entre diversos dos mais renomados autores da ficção científica. Um livro tão enxuto comporta reflexões muito dolorosas e incômodas sobre inúmeros temas, que perpassam desde o colapso ambiental até a fragilidade da condição da mulher em uma sociedade patriarcal.
Cabe também ressaltar que O Conto da Aia não discute tão somente a questão feminina, mas também lança luz a críticas contundentes aos limites da religião e Estado, às ditaduras e à perseguição às minorias, como a população LGBTQIA+, que também é fortemente atacada na história (ainda que Offred não tenha muito contato com tal questão por viver em isolamento). As escolhas individuais são completamente tolhidas em Gilead em nome de uma fé distorcida de modo a atender os interesses do opressor.
Margaret Atwood foi muito sábia na confecção de O Conto da Aia, atacando de forma sutil e inteligente - assim como Offred -, sem jamais perder o foco no objetivo da escrita. A leitura é desafiadora, pesada, vagarosa e bastante indigesta, mas é preciso que seja assim. As discussões propostas por Atwood são graves e dizem respeito a todos, clamam por mudanças e alertam sobre os caminhos tortuosos que a humanidade pode tomar frente ao poder. Ao final, resta uma experiência perturbadora e profundamente transformadora ao leitor que se entregar à narrativa.
Ficha Técnica:
Nome: O Conto da Aia
Autora: Margaret Atwood
Editora: Rocco
Tradutora: Ana Deiró
Número de Páginas: 368
Ano de publicação (no Brasil): 2017 (nova edição)
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