Esta é uma coletânea de três pequenos contos que versam sobre o tempo seja de uma forma direta ou de uma maneira mais simbólica. Desde um senhor que está prestes a viver uma segunda vida em um mundo paralelo separado do seu por um rio, uma senhora com uma estranha fixação por bonecas infláveis e uma mulher nascida da terra.
Sinopse:
Lucas rejeita um mundo onde as pessoas podem ser jovens para sempre, quer envelhecer e seguir como um rio. Angelina combate a hipocrisia e a solidão da velhice fazendo amizade com três bonecas eróticas. A moça assiste a própria história ser contada num palco por pessoas que passaram pela sua vida enquanto derrete numa bacia de água e sal.
Algo que eu sempre recomendo àqueles que me perguntam como eu faço para analisar contos dentro de uma coletânea é buscar elementos comuns. Nem sempre é fácil encontrar estes elementos, mas eles estão ali. Às vezes é algo tão bobo e simples que passa longe do olhar do leitor desatento. E qual seria o elemento comum que liga três contos tão diferentes: o tempo. Seja um senhor cansado ao viver uma longa vida e ansioso por alguma coisa que mude o seu destino; seja uma senhora que busca a alegria de tempos passados na imagem de amigas fictícias; ou uma mulher que nasceu da terra, aquela que nos dá vida e que deseja acima de tudo ser recordada.
Admito ter gostado demais do primeiro conto. Quando começamos a pensar mais atentamente nele, conseguimos retirar muito de suas linhas. Lucas é um homem já em sua idade avançada que vive em um mundo onde as pessoas tem o direito a uma segunda vida em uma outra "realidade" do outro lado do rio. Nesta segunda vida, o homem pode manipular sua idade, seu corpo e até se livrar de arrependimentos passados. Mas, o que vemos ao longo do conto é um indivíduo buscando dar sentido à sua própria existência. Ele se recorda até com melancolia de fatos passados, amores nunca alcançados e o mundo todo parece-lhe diferente e sem cor. Fico pensando na tristeza que vem com os anos e vendo as pessoas se esquecendo de nós, seguindo suas vidas ou nos deixando para trás. Podemos entender essa segunda vida de várias maneiras: uma realidade paralela mesmo, a morte e a vida após a morte ou a reencarnação. O simbolismo do rio presente na história representa o tempo. O curso do rio é inexorável; ele vai manter o seu percurso quer desejemos ou não. E é curioso o final se passar de frente a ele com o que se sucede.
O segundo conto eu achei bastante curioso porque me remeteu ao conto da Trasgo que eu havia lido da autora. Aquele mesmo sarcasmo e ironia estava presente nas linhas da história. Se pararmos para analisar de uma forma bem tosca, o conto é como se fosse uma piada longa. Mas, ao mesmo tempo em que apresenta muito bom humor ele nos coloca determinadas ideias a serem pensadas. Por exemplo, novamente temos uma pessoa que tenta manter sua sanidade apesar de o tempo estar cobrando o seu preço. Para ela, aquelas bonecas realmente funcionavam como suas amigas. Tem uma passagem extremamente impactante no final (que eu não vou falar, meus caros leitores) que me trouxe à memória a situação que eu tive com a minha avó que teve mal de Alzheimer. Minha avó teve essa condição por doze anos e procuramos mantê-la em casa enquanto foi possível para que ela pudesse manter o contato com a família. E em vários momentos percebíamos que ela se encaminhava a um mundo só dela onde ela conversava com pessoas e até nos apresentava seus "novos amigos". Por essa razão eu consigo compreender perfeitamente a postura da filha em relação à sua mãe Angelina e suas estranhas bonecas infláveis. Apesar disso, eu não senti neste conto o mesmo impacto que o conto da Trasgo me trouxe. Mesmo assim, para aqueles que possuem parentes com mais idade e que passam por essa condição de alheamento ao mundo, é um conto que vai despertar fortes emoções.
A Moça na Baía de Água e Sal foi o conto que eu menos gostei. No final dele eu entendi aonde a Cláudia queria chegar, mas achei que ele precisava de um pouquinho mais de gordura para ficar perfeito. Se trata de uma mulher que nasceu da terra e queria encontrar apenas uma vida normal e alguém que a amasse. Mas, os homens a entenderam como suja e indigna de viver. O conto tem uma vibe de mitologia, de folclore. Se a autora tivesse empregado algum elemento do folclore brasileiro aqui eu teria achado completamente normal. E ao mesmo tempo que passa essa energia de mitologia, ela também me parece um causo do interior do Brasil. O que eu percebo é uma profusão de temas presentes no conto: tem um tanto de violência contra a mulher, tem um tanto de elementos de colonialismo, do colonizador subjugando o colonizado, e tem uma discussão muito interessante sobre a manutenção da memória. Algo só é preservado quando ele é mencionado. Aliás, esse é o mote por trás da noção de patrimônio imaterial: preservar práticas para que elas não se percam com a areia dos tempos. Isso também é aplicado a histórias do folclore; precisamos sempre fazer o resgate para que estas histórias não se percam. Mas, admito ter ficado um pouco perdido nesse último conto.
Só para deixar registrado um alerta para a autora, mas quando ela passou para a ferramenta kdp da Amazon, a formatação do conto foi toda mexida. Várias palavras ficaram juntas e criaram alguns erros que eu sei com toda a certeza que não foram da autora, mas da transposição para o formato da Amazon. Só pedir para que ela dê uma olhada para deixar essa coletânea bem redondinha.
No mais, recomendo demais a escrita da Cláudia. Ela consegue passar de uma escrita repleta de símbolos para um humor sarcástico em um estalar de dedos. Gosto demais também da maneira como ela pensa a história. Tem muito de realismo mágico na pena da autora. Adquiram porque vocês não irão se arrepender.
Ficha Técnica:
Nome: O Desejo de ser como um rio e outros contos Autora: Cláudia Dugim Editora: Auto-Publicado Gênero: Ficção Especulativa Número de Páginas: 31 Ano de Publicação: 2017
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