O nascimento de um estranho bebê com tufos nascendo da cabeça e uma estranha pele cobrindo os olhos mudará completamente a vida dos habitantes de Aphriké.
Sinopse:
Aphriké é o nome de um planeta fadado à luz interminável. Um planeta considerado o único do universo, e habitado por uma raça telepática que desconhece o sono, o sonho e a privacidade. Convictos da eternidade de seu mundo, os aphrikeianos não desconfiam que tudo foi criado por R’av, um ser com poderes cósmicos e obcecado pela ideia de perfeição.
Mas mesmo um deus pode errar. Sobretudo se for um deus aprendiz e que desconhece o que realmente é.
Aprisionados a uma maldição alardeada por bárbaros liderados pela feroz Lah-Ura, os aphrikeianos nem desconfiam que seu paraíso está prestes a ser arruinado. Até que nasce uma aberração: um menino capaz de dormir. Uma pessoa capaz de, através dos sonhos, entrar em contato com Outromundo, um planeta como Aphriké, mas iluminado por um único sol amarelo. Considerado deficiente, este menino precisará se unir à letal Lah-Ura para, juntos, revelarem a verdade oculta da criação de Aphriké. Uma verdade que a luz esconde, mas que a escuridão revelará.
O Esplendor é um romance imaginativo e envolvente de Alexey Dodsworth. Quando a luz oculta a verdade, só um mergulho aos sonhos pode iluminar o mundo que nunca se apaga.
Admito ter me deparado com poucas boas histórias de ficção científica no Brasil. Daquelas de explodir o cérebro, de te fazer dizer "Wow". Mesmo que a narrativa seja um pouco difícil e o leitor precise ralar um pouco para aprender, eu gosto deste tipo de histórias. A outra que havia me feito sentir algo parecido com o que senti lendo O Esplendor, foi Guerra Justa de Carlos Orsi. Curiosamente é um livro publicado pela mesma editora. O que eu quero dizer neste começo de resenha é que precisamos de mais autores brasileiros adentrando nesta seara tão interessante que é a hard scifi, ou ficção científica dura.
Por onde começar? Esse ano estou sendo um leitor afortunado; agraciado com várias leituras impactantes, tenho repetido o mantra "melhor leitura do ano" com frequência. Esse certamente é um daqueles livros que vão entrar neste hall. Não apenas pela narrativa intrigante, mas pelas temáticas trabalhadas pelo autor. E fico indignado de este não ser um livro mais comentado entre os leitores do gênero. Aqui temos uma escrita que mostra o cuidado que o autor teve ao construir seu mundo. Porque a escrita é parte integrante da narrativa ao criar códigos e funções para os membros da população de Aphriké. Mesmo a linguagem empregada serve à narrativa porque precisa demonstrar a ausência de determinadas palavras no vocabulário como trevas, dorme, morte. O contato com elas vai nos apresentar um terrível estranhamento simplesmente porque o cidadão comum não conhece noções para nós tão rotineiras. Mais adiante o leitor vai achar engraçado quando uma das personagens apresenta outras ideias ao protagonista. E vou parar minha fala por aqui para não estragar algumas surpresas. A escrita é em primeira pessoa contada a partir de relatos coletados por Tulla 56, do Ilê Tulla e responsável pelos registros históricos. Em seu registro diamantino, estão presentes as memórias de várias pessoas. Ela comenta alguns momentos da história, nos mostrando uma narrativa em primeira pessoa mais próxima, apesar de haver outros pontos de vista presentes. Uma saída curiosa para apresentar diferentes aspectos da sociedade. No começo da narrativa, essa alternância entre pontos de vista não é tão clara, mas mais adiante o leitor vai ser capaz de observar os fatos a partir de diversos núcleos. Portanto, o recurso narrativo de contar a história a partir de um registro de memórias coletivas é sim algo bem original.
Para falar dos personagens eu preciso comentar sobre a sociedade de Aphriké. Ela é estática sendo que cada indivíduo é parte de um coletivo maior. A pessoa escolhe um Ilê no qual vai se ligar e cada um destes Ilês é responsável por alguma função social. À pessoa é vedado fazer outra coisa que não a função de seu Ilê. As Tullas são as historiadoras, as Kayeras são as engenheiras, os Woluya-Orans são os arquitetos, os Agbês são os agricultores, as Ewin são poetisas, as Orins são cantoras. Esse aspecto me fez lembrar da sociedade de ordens típico da Idade Média no Ocidente. Onde tínhamos os bellatores (aqueles que guerreiam), os oratores (aqueles que oram) e os laboratores (aqueles que trabalham). Cada ordem deveria realizar sua função e não podia realizar a função da outra ordem. A justificativa para isso era dada pela Igreja que dizia que Deus havia dado a cada indivíduo sua função no universo e não cabia a nós, reles mortais, questionar os desígnios celestes. A ideia de Alexey em O Esplendor é semelhante. Só que é preciso pensar coletivamente. Por compartilharem mentes através da telepatia os indivíduos tinham seus pensamentos vigiados o tempo todo. Poderiam ser acusados de crimes como soberba, delírios cultistas (quando imaginavam coisas que "não existiam"), inveja. O que temos aqui é uma sociedade que valoriza a estabilidade e a estaticidade a qualquer custo. Todos tinham suas funções e isso limitava um pouco o progresso. A privacidade era sinal de anseios que não condiziam com o que a sociedade pregava. Por isso era desestimulado. Até mesmo o sexo era praticado publicamente e as sensações da relação eram transmitidas coletivamente através da malha telepática.
Algumas coisas eram vistas como irracionalidade como a religião. Como rebeldes temos um grupo de pessoas que vivem nas ruínas de uma antiga civilização que veneram um deus chamado Ra'v que teria sido responsável pela criação das pessoas de Aphriké. Mas, a Cidade Iridescente (onde a história se passa) considera a religião como irracional. Os Arimeos, um ilê que é responsável pela difusão das normas e regras sociais, criaram um conservadorismo ferrenho que se entranhou em cada um dos indivíduos. Quando começam a surgir questionadores como Itzak, estes são tratados com desdém e até como piada. O que é colocado pelos arimeos é quase como um culto; o da luz sempiterna, ou seja, da luz eterna e constante. Isso porque Aphriké possui seis sois: Osum, Osala, Sango, Omulu, Yewa, Oya e Yewa. Portanto, Aphriké é eternamente coberta pela luz dos sois. Não se conhece a escuridão, aliás, não se conhece nem a noção do que é escuridão. A própria noção da luz sempiterna nos demonstra como a sociedade encara a si mesma e a maneira como ela deve viver a vida: sempre constante, nunca mutável.
Para manter a ordem, os discordantes são encaminhados a um tratamento de reciclagem feito pelo Ilê Monástico, que refaz os pensamentos dos indivíduos. É o controle da mente para a manutenção da ordem. Só que eventualmente aqueles que querem esconder seus pensamentos vão encontrar maneiras de difundir suas ideias e é nesse sentido que a história acontece. O leitor vai aos poucos percebendo que a sociedade perfeita possui uma série de pequenas brechas presentes em todos os setores da sociedade. Quando os problemas começam a ocorrer, é como uma fileira de dominós caindo uma atrás da outra.
O único ponto fraco que eu senti na história é a difícil curva de aprendizado. O leitor demora um pouco a se acostumar com a escrita do autor e o sentido da história. Isso é muito porque a história foi concebida para ser dessa forma. Não sei de que maneira aliviar esse problema porque isso tiraria a fluidez posterior da narrativa. Quando o leitor consegue se assentar na escrita, a história passa brincando. Para mim, o ponto foi entre 35 e 40% da narrativa. Alguns leitores podem acabar desistindo antes. Mas, peço aos senhores que estão lendo esta resenha: SEJAM PACIENTES. Sério. A história recompensa demais o leitor. São tantos temas que eu poderia comentar aqui, mas não quero entrar em muitos detalhes da história para não dar spoilers.
Queria tocar em dois temas trabalhados pelo autor. O primeiro é o de uma sociedade coletivista desprovida de guerras. A nossa experiência como seres humanos mostra ser muito complicado obter esse nível de união. Diferenças e discussões são o que torna a nossa sociedade progressista. Não é possível termos uma sociedade em que todos concordam com tudo e todos. A dialética precisa existir mesmo que ela cause problemas e rupturas. Não se trata de uma apologia à guerra e à violência, mas uma compreensão de que o debate acarreta o dinamismo.
O segundo tema é uma teoria minha acerca de uma passagem do texto. Como a narrativa se foca bastante em que a verdade precisa ganhar luz frente às sombras escondidas por uma sociedade conservadora, em um momento da narrativa eu senti a presença da alegoria da caverna, de Platão. Eu fui lendo, lendo, lendo e algo estalou na minha mente. Pensei: "o autor não quer dizer o que eu estou pensando, certo?" Quando me dei conta, eu lembro de ter desligado o Kindle por alguns minutos e aberto um sorriso maroto. Não se preocupem, gente... isso acontece em várias partes da narrativa. Os momentos finais então são de fritar o cérebro. Mas, enfim, gostei da maneira como o autor emprega a alegoria da caverna para demonstrar o quanto a verdade se tornou imprescindível para fugir de uma situação que era cada vez mais iminente. E que, por tolice e incompreensão, a sociedade da Cidade Iridescente se recusava a enxergar a verdade. Mesmo que esta verdade destruísse as bases do que os cidadãos consideravam como senso comum. Em certos momentos me pareceu que Lah-Ura era quem estava fora da caverna e todos os outros estavam dentro dela. E Lah-Ura queria que todos saíssem da caverna e enxergassem o mundo que havia lá fora.
Bons livros de ficção científica são leituras inesquecíveis. Fazem o leitor pensar e questionar determinadas verdades absolutas. O Esplendor não é uma defesa de ideias, mas uma narrativa que vai fazer você refletir. Com uma escrita muito criativa, personagens fantásticos e uma narrativa intrigante, Alexey entregou mais uma leitura que facilmente estará entre as melhores leituras do ano. Mas, com tantos bons livros lidos vai se tornando cada vez mais difícil escolher apenas cinco livros bons. Que bom que estou tendo sorte.
Ficha Técnica:
Nome: O Esplendor
Autor: Alexey Dodsworth
Editora: Draco
Gênero: Ficção Científica
Número de Páginas: 404
Ano de Publicação: 2016
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