Os riscos nunca foram tão grandes quanto agora. Com o Império Final à beira do colapso, Elend e Vin precisam descobrir o que está fazendo o mundo morrer. Enquanto perseguem pistas deixadas pelo próprio Senhor Soberano, precisam lutar pela própria sobrevivência.
CONTÉM SPOILERS DOS VOLUMES ANTERIORES
Sinopse:
O capítulo final da trilogia Mistborn, de Brandon Sanderson Após subverter a lógica dos livros de fantasia tradicional e arrebatar uma quantidade incrível de admiradores, entre eles George R. R. Martin em pessoa, Brandon Sanderson encerra a trilogia fantástica Mistborn de forma no mínimo surpreendente. Para acabar com o Império Final e restaurar a liberdade, Vin matou Lord Ruler. Mas, em consequência, poderosos terremotos causaram o retorno das trevas, e a humanidade parece estar definitivamente condenada. Resta saber como Vin poderá se livrar da culpa e reverter este cenário. A conclusão da série promete não decepcionar os leitores dos dois primeiros volumes, já que está repleta de revelações e reviravoltas, dignas dos leitores mais exigentes.
Com certeza um autor se sente recompensado quando seus planos dão certo. Quando ele espalha sementes de informação ao longo de vários volumes de sua série e elas entregam algo surpreendente para os leitores. Talvez essa seja a melhor definição para este volume: surpreendente. O que começou com um escopo mais contido no primeiro volume se torna um épico de proporções planetárias aqui com os personagens lutando por suas próprias existências. Isso enquanto precisam lidar com segredos ancestrais e suas próprias dúvidas internas. Se eu achava exagerado todo o hype em cima do autor nos dois volumes anteriores, agora tenho mais respeito pelo que ele produz. Ainda não tem o mesmo peso que Malazan teve em minhas preferências como leitor, mas admito gostar mais do que antes. Está entre minhas melhores leituras deste ano, com certeza.
ANTES DE PROSSEGUIR, ATENTEM QUE É UMA MATÉRIA QUE CONTÉM MUITOS SPOILERS DE VOLUMES ANTERIORES.
No volume anterior terminamos a narrativa no Poço da Ascensão com Vin libertando uma força cósmica poderosa chamada Ruína e não salvando Elend de forma a poder ajudar o Império Final, não repetindo os erros do Senhor Soberano. Mas, uma espécie de ser formado de brumas ajuda Elend fazendo-o ingerir um metal misterioso que fornece a ele os poderes de um Nascido das Brumas. Elend revive queimando peltre pela primeira vez em sua vida. Estamos diante de uma nova realidade em que Elend precisa assumir como um imperador e não mais como um idealista. Em um mundo onde as cinzas caem mais fortes todos os dias e cobrem terras, rios e lagos, tudo parece estar caminhando para a ruína. Resta ao casal buscar estranhos depósitos deixados pelo Senhor Soberano, assim como aquele deixado em Luthadel onde se encontrava o poço, e desvendar os enigmas deixados por ele. Quem sabe exista uma pista sobre como derrotar uma força como Ruína. Sazed se esforça para superar a morte de Tindwyl e começa a duvidar de sua própria fé nas religiões que ele tanto guarda. Será que uma das centenas de religiões poderá fornecer as respostas que precisa em seu momento de dor? TenSoon está preso na Terra Natal dos kandras e irá lidar com a quebra de um tabu entre seus iguais. E Fantasma seguiu para Urteau a mando de Elend para lidar com um estranho skaa chamado o Cidadão que tomou o poder e conclama por uma revolução em nome de Kelsier. E por que Marsh agora luta contra seus antigos companheiros? E que mistério guardam os Inquisidores do Aço?
Antes de começar a falar da narrativa e do trabalho magistral de Sanderson neste volume, preciso dar um puxão de orelhas na Leya. Sei que ela nem tem mais um setor ou um selo voltado para a fantasia, mas alguns fatores podem explicar essa saída dela (além de toda a situação do marketing atrapalhado e a falta de engajamento dos fãs). A tradução foi feita pelo Petê RIssatti que é um profissional com bastante estrada e já fez dúzias e mais dúzias de traduções. E ver o que foi feito aqui neste livro me acende um alerta sobre a necessidade das editoras de protegerem os seus profissionais. Em uma tradução de um trabalho grande como os livros do Sanderson, o processo editorial ideal pede que se faça uma tradução, uma revisão da tradução e um copidesque antes do livro chegar às lojas. Essa etapa textual demanda cuidado para não entregar algo mal feito ou truncado. O que se vê no livro são vários errinhos e typos que acabam por incomodar. Não pela gravidade, mas pela frequência com que eles aparecem. Isso é um sinal de que o processo editorial ficou incompleto e etapas foram puladas para que o livro fosse publicado o quanto antes (fico até preocupado com o Mistborn Segunda Era que teve três volumes publicados de uma só vez). Esse tipo de atitude de uma editora deixa um profissional de tradução na berlinda, sem proteção. Qualquer um que lide com textos sabe que erros irão passar. Somos seres humanos e estamos passíveis de cansaço, desatenção. Isso é completamente normal... se não fosse, por que existiria a função de revisor textual? O que temos neste volume aqui é a prova de que a editora publicou o livro a toque de caixa, sem se preocupar com o miolo. Em um caso como esse, jamais vou ficar do lado da editora, e sim do tradutor que merece respeito e atenção. Quando algo como isso sai para as prateleiras, é óbvio que outras editoras estão atentas para avaliar se o trabalho do tradutor é bom ou não. É o ganha-pão do tradutor que está em jogo. Eu deveria tirar um ou dois pontos da seção Escrita na minha avaliação final, mas não vou fazer em respeito ao que Sanderson entregou aqui,.
Pensando neste volume final de Mistborn Primeira Era, é possível dizer que Sanderson é um cientista da escrita. Talvez essa seja a maior diferença entre Erikson e Sanderson. Se o Erikson é mais um historiador interessado na longa duração, na formação e queda de impérios, Sanderson é um cientista que brinca com seus mundos em tubos de ensaio. Ele vai misturando diferentes elementos e anotando que reações são perceptíveis até encontrar a fórmula ideal. Ao final deste terceiro volume, várias perguntas que tínhamos lá desde o primeiro terão sido respondidas enquanto que algumas outras são introduzidas. É totalmente possível encerrar sua jornada nas séries do autor aqui, já que ele fornece um final bastante satisfatório à jornada. Os ganchos deixados são sutis e só te fazem retornar se você realmente tiver curiosidade em continuar. A escrita do autor melhorou bastante aqui, e podemos perceber como ele está mais à vontade com seus personagens e seu mundo. Alguns vícios que ele tinha foram atenuados ou quase desapareceram. Só ainda reclamo do frequente "franzir o cenho". Estou franzindo o meu cenho porque devem existir várias outras expressões para personagens intrigados.
Por causa do escopo que o livro toma, Sanderson começa a empregar mais pontos de vista. Agora isso é bem claro e dividido entre os capítulos. Isso permite ao autor navegar por várias partes do Império Final e inserir tramas que se interligam. Seja nos protagonistas, para os personagens secundários ou até o antagonista. Ter escolhido espalhar mais sua trama aumentou o tamanho do livro, mas forneceu ao autor a oportunidade de desenvolver melhor seus personagens e amarrar pontas soltas que estavam pendentes de volumes anteriores. E ainda tem outro ponto: os pequenos trechos em itálico que eram curiosidades em volumes anteriores ou enigmas narrativos no segundo volume, agora se tornam essenciais para a história. Os textos de apoio fornecem pistas e revelações a partir de um narrador misterioso que, através de suas anotações, nos revela situações que perpassam o tempo de vida dos próprios personagens. Para um autor que usa uma forma de escrita mais comercial, empregar estes detalhes finos me deixou surpreso.
Algo que os leitores gostam de abordar é sobre o seu sistema de magias, e o quanto eles são criativos. Neste terceiro volume descobrimos mais sobre a Hemalurgia, a ciência mágica por trás dos inquisidores. Não vou falar muito sobre ela porque existem pontos de suas características que se conectam com a história. Mas, vou falar mais sobre a Alomancia e a Feruquemia, e tem sim alguns spoilers. Tanto uma como a outra são obra de Preservação, a entidade que se opõe a Ruína. Percebam que tudo em Mistborn tem a ver com os opostos. Como pólos de um ímã. Se Ruína é uma entidade voltada para destruição, Preservação prega a estabilidade (detalhe: Preservação não cria e nem destói, apenas preserva... é um detalhe narrativo bastante importante). A Alomancia é um sistema de magias baseado na exploração e queima de metais. Cada um deles fornece alguma habilidade a seu usuário. Vale destacar que muitos pensam que um Nascido da Bruma é o indivíduo overpower da história porque consegue usar todo, mas um bom Brumoso que saiba usar bem o seu elemento pode ser revelar uma ameaça bem maior. Podemos ver os casos de Brisa (um Abrandador) e Fantasma (um Olho de Estanho). Tem um momento da narrativa em que Fantasma, que possui na teoria uma habilidade quase inútil, oferece um desafio a vários alomânticos. Não é o fato de usar vários metais que te torna habilidoso, mas o quanto o usuário é familiarizado com o seu elemento.
Já a Feruquemia nos coloca diante de uma matemática diferente. Como os opostos, a Feruquemia ressalta essa ideia ao fazer um usuário ficar mais fraco ou letárgico para suprir as suas mentes de metal com mais de uma característica. Se o terrisano quer ficar mais forte, ele precisa ficar mais fraco por algum tempo para que suas fontes sejam alimentadas. Se ele quer ficar mais rápido, precisa se tornar lento. E assim sucessivamente. É como o equilíbrio intrínseco a uma equação. No volume anterior, Sazed descobriu que se ele infundir em seu corpo um metal, ele pode retirar mais habilidade e que o Senhor Soberano nada mais era do que um Nascido da Bruma e um Feruquemista ao mesmo tempo (sua imortalidade vinha de contas de atium infundidas dentro de seu corpo). Os Inquisidores do Aço são feruquemistas e hemalúrgicos ao mesmo tempo, como Marsh se torna.
O mundo que Sanderson criou passou por várias mudanças após o cerco a Luthadel. A cidade agora está nas mãos de lorde Penrod enquanto Elend saiu junto com Vin à procura dos depósitos. Se os volumes anteriores se concentravam inteiramente em Luthadel, agora Sanderson nos apresenta o resto do continente. A divisão dos núcleos se passa em três lugares: em Fadrex com Elend e Vin, em Urteau com Fantasma e na Terra Natal com TenSoon. Vamos explorar mais a economia, a religião e a política, seguindo com mais profundidade o que foi trabalhado no segundo volume. Por exemplo, descobrimos que Urteau era uma cidade toda baseada em canais aquático, mas estes foram drenados em algum momentos, deixando a cidade bastante empobrecida, embora ela seja uma importante abastecedora de alimentos para Luthadel. Já Fadrex não era exatamente a capital do Domínio Oriental, mas quando Cett assumiu o poder, transferiu para lá por se situar em um local mais facilmente defensável. Os territórios mais distantes de Luthadel tem sofrido mais com o expelir frequente de cinzas, deixando-os em um estado lastimável de carestia.
Elend precisou se tornar aquilo que ele não gostaria: um imperador duro e que precisa tomar decisões difíceis pelo bem do Império Final. Vemos aqui que ele está mais seguro e confiante de si, tendo absorvido bem os ensinamentos de Tindwyl. Mas, isso o torna mais próximo daquele que ele e o bando de Kelsier ajudaram a destronar. O personagem fica nesse vai e volta onde ele precisa se aceitar como o governante que eles precisam. Tendo se tornado uma pessoa essencial e quase um símbolo entre aqueles que o vislumbram no meio da multidão. É interessante como o personagem precisa usar uma máscara e passar uma imagem de si que nem sempre ele mesmo acredita nela. Apenas Vin tem acesso a esses seus receios. Tendo se tornado um Nascido da Bruma, e um bem poderoso, ele agora consegue auxiliar no combate e isso contribui com o simbolismo quase messiânico de sua presença. Mas, ao final das contas quem irá vencer a disputa em seu interior: o idealista ou o chefe militar? Ou até mesmo uma amálgama dos dois?
O dilema vivido por Elend é quase igual ao que Vin viveu no volume anterior. E a personagem consegue fazer as associações dessa busca pela identidade. E ela sabe muito bem que não pode ajudá-lo nesta busca, que é algo pessoal dele. Estar em paz com a necessidade de proteger o seu amado o tempo todo é uma tônica da relação dos dois neste terceiro volume. É maduro da parte dela entender que não adianta colocar seu marido em uma redoma de vidro. Ele precisa fazer o que tem que fazer e é o papel dela dar apoio e ajudar da melhor forma possível. Vin não se torna apenas a esposa de Elend, mas sua parceira. Talvez o melhor simbolismo dessa aliança que os une acontece em um baile em Fadrex quando eles dançam pela primeira vez. Parece bizarro que no meio de uma terrível batalha e com um mundo em ruínas eles possam ter bailado com amantes que se encontraram pela primeira vez. O desafio de Vin neste volume é o próprio Ruína. Ela precisa entender o que ele é para poder derrotá-lo, mas seus poderes são vastos demais. Diferente do Senhor Soberano, Ruína não é um ser humano, mas um motor da Criação, uma força abstrata cujo único objetivo é destruir. Ele não faz isso por ser maligno, mas por ser parte de sua natureza.
Duas formas de governo diante de uma calamidade se espalham pelo Império Final: um governo que tenta emular o status quo, agradando as classes dominantes e continuando a explorar os skaa; e uma anarquia completa onde os skaa vivem sob o jugo de um ditador que tenta impor regras a todo custo. Esse problema vai fazer parte dos questionamentos de Elend a respeito de seu papel como líder. Em Fadrex ele encontra um obrigador astuto capaz de manter a sociedade funcionando mesmo com o Senhor Soberano morto. Yomen transforma o Senhor Soberano em uma figura mítica, divina mesmo, que é infalível e lhe fornece a legitimidade para governar em seu nome. É a ótica do absolutismo monárquico que busca negociar com nobres e burgueses para se manter no trono. Já o Cidadão é um ditador em seu sentido estrito. Adota um modelo fascista de higienização e homogeneização onde as pessoas o seguem por medo, muito mais do que por respeito. Elend sabe que o seu modelo imperial baseado em um líder carismático não está longe daquilo que o Senhor Soberano fez. Ele tenta equilibrar em uma balança um governo justo e emergencial, capaz de lidar com os problemas à sua frente. Sabe que não é o líder ideal e está disposto a sair do trono quando a emergência passar. Gostei de ver o Sanderson trabalhando aspectos políticos com mais densidade do que antes. Os volumes anteriores pareciam mais ingênuos nesse ponto.
Também temos a narrativa de Sazed que está em uma profunda depressão após a morte e Tindwyl. Isso o faz questionar a sua missão como Guardador e ele não deseja mais ensinar religiões. Se ele não acredita mais no que prega, Sazed se sente um hipócrita de passar isso adiante. Suas reflexões chegam até o conceito de fé. Ao longo de todo este terceiro volume vemos um personagem buscando obsessivamente pela verdade nas religiões que ele guarda. Ao pesquisar cada uma delas, Sazed se angustia porque cada uma delas é repleta de contradições e desinformações. Ele quer entender por que os deuses deixaram o mundo chegar a esse ponto e a necessidade da morte de tantos inocentes. Só que tem um problema na busca dele: fé alguma te fornece uma verdade inquestionável. A própria noção de fé é algo que ultrapassa a mera razão. Por essa razão que durante o Renascimento cultural na Europa do século XVI, fé e razão se separaram em definitivo. Acreditar em algo nem sempre é algo que pode ser explicado em algum tipo de método científico. É um salto em direção ao infinito em que apostamos nossas vidas que alguma coisa irá acontecer e salvar de uma eventual queda. Os trechos de Sazed vão parecer chatos e arrastados, mas existe um motivo para isso e o desfecho vale todo o esforço em seguir o personagem. É quando as coisas fazem total sentido e toda a busca dele contribui para a narrativa.
Deixando algumas pontas soltas ao final para se ligar com o seu plano maior para a Cosmere, Sanderson encerra muito bem essa trilogia. Gostei de como ele lidou com a duplicidade entre Ruína e Preservação, algo que quem for ler Emperor's Soul, a próxima parada na estrada da Cosmere de Sanderson, vai entender que existe um mistério maior entre essas duas entidades. Ou que existem algumas peculiaridades sobre a alomancia que não foram completamente explicadas. Esse é o gosto doce daquela boa história que deixa o leitor com a pulga atrás da orelha em busca de mais informações. Novamente, mesmo sendo uma escrita bem comercial, conseguimos ver o autor brincando com algumas coisas e amadurecendo bastante os seus planos. Como uma trilogia inicial para este mundo incrível criado pelo autor, agora queremos ver aonde ele deseja nos levar.
Como disse, a próxima parada é a novella Emperor's Soul que está contida na coletânea Arcanum Unbounded. Aguardem em breve a resenha.
Ficha Técnica:
Nome: O Herói das Eras
Autor: Brandon Sanderson
Série: Mistborn Primeira Era vol. 3
Editora: Leya
Tradutor: Petê Rissatti
Número de Páginas: 688
Ano de Publicação: 2016
Outros Volumes:
Link de compra:
A Cosmere é simplesmente a minha série favorita, não vejo a hora de ler O Caminho dos Reis pela primeira vez aqui no Brasil daqui duas semanas