January é uma oneironauta - uma agente capaz de atravessar universos paralelos através dos sonhos. Alguém que ainda não está completamente treinada e não conhece os meandros que movem as missões realizadas por eles. E January se vê no centro de uma perigosa trama envolvendo o centro da Terra, alienígenas e o destino do mundo.

Sinopse:
January Purcell é uma Oneironauta. Ela faz parte de uma Fraternidade de viajantes dos sonhos que atravessa os séculos, navegando o Existir e realizando missões em várias épocas e encarnações com o objetivo de defender a realidade de alterações na linha temporal. Um certo dia em 1888, essa mulher extraordinária cruza o caminho de um certo Dr. Jones, cientista milionário que inventou um novo combustível, que poderá salvar a humanidade... ou destruí-la. Caberá a January descobrir se Jones também é um oneironauta e recrutá-lo (com uma ajuda do explorador Richard Francis Burton, também membro da Fraternidade) antes que alguma facção inimiga o faça. Numa realidade em que obras como Viagem ao Centro da Terra e A Guerra dos Mundos são relatos verídicos ao invés de ficções, não será uma tarefa nada fácil. Preparem-se para o Longo Jogo.
O tema dos oneironautas não é novidade para aqueles que acompanham o trabalho de Fábio Fernandes. Ele gosta de brincar com as nossas percepções do que é real ou não. Em Love will tear us apart, Fábio nos mostra um Ian Curtis que não é aquele que conhecemos do Joy Division. É e não é ao mesmo tempo. Só depende de sua perspectiva. Já tinha curtido esse mundo e agora o autor volta a essa forma de enxergar múltiplos mundos só que amplia mais a nossa expectativa. O que vemos ao lado de January Purcell é um mundo perigoso onde qualquer decisão tomada tem consequências severas para múltiplas realidades. E onde a ficção e a realidade caminham quase de mãos dadas.
Ainda jovem, January Purcell começa a ter visões aterradoras, onde ela se encontra em lugares pelos quais nunca passou ou se pegou presenciando acontecimentos futuros. Inicialmente ela atribui à sua imaginação, mas logo ela descobre que é muito mais do que isso. Em seus sonhos cada vez mais realistas, ela conhece Hipátia de Alexandria, que se torna sua mestre e a inicia nos mistérios oneironáuticos. Logo, ela fica sabendo do Grande Jogo e do Longo Jogo, onde forças sombrias ameaçam destruir o tecido da realidade. January passa a ser enviada em missões cujos objetivos nem sempre são tão claros. Em sua próxima missão, ela é enviada para uma Londres do século XIX onde precisa embarcar em uma viagem estranha ao lado do dr. Jones, um homem que descobriu uma forma de conter uma fonte de energia limitada ao alcance das mãos. O que deixa January preocupada é que alguns dos itens que fazem parte de seu equipamento estão fora de compasso com essa realidade. Precisando continuar sua missão, a nossa agente precisa ficar de olho porque o perigo espreita a cada esquina e pode estender seus tentáculos pelo passado, presente e futuro.
"Nações fazem guerra, não pessoas. Elas fazem isso para permanecer como estão. Nações ocupam territórios, escravizam pessoas, comandam recursos a seu bel-prazer. E esses recursos são o que fazem as nações, essencialmente. Se uma nação tem mais de um determinado recurso, algo de que outras nações precisam desesperadamente, ela é uma nação rica."
Esse é claramente o livro inicial de uma série. Aqui, Fábio precisa explicar aos leitores o que é a oneironáutica. Mesmo quem não leu Love will tear us apart vai conseguir acompanhar numa boa o que o autor apresenta para nós. A cada instante da narrativa, Fábio nos explica alguns detalhes, existem algumas epígrafes interessantes no começo de cada capítulo que esclarecem pontos que possam deixar dúvidas. Aliás, Fábio emprega capítulos bem curtos que cobrem as cenas ou trechos específicos. Por esse motivo passa a impressão de que o livro é mais curto do que parece. É uma técnica comum na literatura Young Adult, mas preciso dizer que ela acaba não sendo tão essencial assim. O autor poderia ter apenas dividido os capítulos em subseções que teria tido o mesmo efeito. Mas, é aquilo: são escolhas. Isso ão prejudicou a dinâmica e o ritmo da narrativa. A estrutura narrativa é a narrativa em três atos com o leitor acompanhando o treinamento e desenvolvimento da protagonista ao longo da história. Gosto que Fábio tenha optado por essa estrutura ao invés da jornada do herói, algo comum em romances de aventura ou em séries do gênero. Nem sempre isso é necessário. A protagonista é alguém já bem resolvida e sabe o que deseja para si. Suas dúvidas giram em outras questões transversais de sua vida.

A narrativa é contada em terceira pessoa naquele estilo da câmera no ombro do protagonista. As informações iniciais sobre a "física" da oneironáutica é contada por uma January em treinamento através de pequenos flashbacks de suas interações com Hipátia. Foi uma mecânica inteligente que ajudou a construir a relação entre as duas personagens. Hipátia em uma personagem repleta de mistérios que nós, leitores, vamos saber aos poucos. Voltando à escrita em si, ela é focada no aspecto narrativo propriamente dito, com o autor dando espaço para o leitor construir as cenas em sua imaginação. Prefiro assim do que uma descrição pormenorizada do que está acontecendo em cada cena. O autor vai entregando mistérios a cada nova etapa da aventura e estes vão nos deixando curiosos sobre o que está realmente se passando. Aos poucos, Fábio responde algumas perguntas ao mesmo tempo em que faz outras que devem ser resolvidas em futuros livros. É possível ler apenas esse livro que a história se fecha numa boa, mas acredito que muitos de vocês, assim como eu, vão retornar para a continuação. Não achei a trama confusa ou complicada; os momentos em que isso acontece, é proposital. É porque o autor quer causar isso para responder alguns capítulos mais à frente.
"Você ainda acha que o bem e o mal são absolutos, minha menina? Depois de tudo o que eu lhe mostrei, de tudo o que você mesma tem vivido? Muitas vezes, o que é bom para uns é ruim para outros. Toda a história da humanidade é isso, para todos os homens. E é ainda pior para nós mulheres."
Tem muitas referências de Fábio aos autores clássicos da ficção científica como Jules Verne, H.G. Wells e até Edgar Rice Burroughs. A ideia dos múltiplos mundos que January atravessa pode possuir personagens ficcionais que são reais e estão realizando ações descritas nos livros. Ou seja, temos uma metaleitura bastante curiosa entre as página onde vemos certos personagens possuindo características semelhantes às suas contrapartes ficcionais. Isso também faz parte da confusão de sonho dentro de sonho dentro outro sonho. Essa estratégia de confundir a percepção o leitor também é empregada na protagonista que, em determinados momentos, tem dificuldade para se situar no espaço. Isso a deixa propensa a armadilhas realizadas por seus inimigos. Quando mencionei lá em cima que Fábio optou por capítulos curtos, isso não significa que o leitor deva ler o livro em velocidade. Acho um erro fazer isso porque você pode perder detalhes bastante delicados da trama. Minha recomendação é para ser calmo e absorver tudo o que é dito nas páginas porque até as menores informações tem uma consequência futura.
A crítica ao machismo típico de finais do século XIX está bastante presente na narrativa. Lembremos que esse foi um período em que os movimentos feministas começavam a despontar na Europa com as mulheres desejando um espaço maior na sociedade. Ver o quanto January é julgada por ser uma aventureira e uma pesquisadora é gritante. Mesmo um homem como Richard Burton, apresentado como um vanguardista e alguém de alto conhecimento, não escapa de uma pré-concepção errada de nossa personagem. Isso a coloca em situações desconfortáveis pelas quais ela não precisaria ter passado caso seu gênero fosse diferente. January é alguém que não aceita determinadas barreiras, o que sempre a coloca como uma transgressora. Desde sua vestimenta, seu modo de falar e até aonde ela pode ou não entrar tem a ver com o fato de ela ser mulher. Ela precisa se provar o tempo todo e ao final algumas das pessoas que a julgaram apenas aceitam que estavam errados em algumas coisas que disseram ou fizeram a ela. É preciso pontuar que estamos olhando com nossa perspectiva contemporânea e Fábio foi muito feliz ao representar o tratamento dado às mulheres naquela época.

"Ninguém teria acreditado, nos últimos anos do século XIX, que este mundo estava sendo observado com atenção e de perto por inteligências superiores à do homem, e no entanto tão mortais quanto a dele; que, à medida que os homens davam conta de suas diversas preocupações, eles eram examinados e estudados, talvez quase tão minuciosamente como um homem com um microscópio examinaria as criaturas transitórias que enxameiam e se multiplicam numa gota de água."
No geral, a narrativa é muito boa e Fábio mantém muitas das características que me fazem gostar de seus livros: o emprego de mecânicas de escrita sempre diferentes, a ficção especulativa sempre bem sutil a ponto de dar muita verossimilhança ao mundo narrativo e personagens bem redondinhos. Até mesmo o seu amor por música está presente no livro, com nosso querido superstar transgressor David Bowie. Continuo dizendo que o Fábio deveria fazer uma playlist para a gente escutar junto de seus livros. Esse é o primeiro livro no que parece ser uma série, algo que ainda não tinha visto do autor, mas que já estou bastante empolgado. A temática dos sonhos e dos universos paralelos pode fornecer tramas bastante legais para próximos livros.


Ficha Técnica:
Nome: O Torneio de Sombras - As Aventuras de January Purcell
Autor: Fábio Fernandes
Editora: Avec Editora
Número de Páginas: 248
Ano de Publicação: 2024
Link de compra:
*Material enviado pelo autor

Comments