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Foto do escritorPaulo Vinicius

Resenha: "O Último Voo das Borboletas" de Kan Takahama

Kichou é uma tayu que trabalha em uma das casas de prazeres mais famosas de Maruyama. Entre os lençóis de seda e as lanternas vermelhas, a vida de Kichou é mais terrível do que se pode imaginar. E os sacrifícios que ela fez também.


Sinopse:


A premiada autora de mangás Kan Takahama nos traz um recorte singular de um momento turbulento do Japão, quando se encerrava a Era Edo e se iniciava a Era Meiji, com as forças do xogunato recuando e as fronteiras do país começando a se abrir para negócios com nações estrangeiras. É nesse panorama de grandes mudanças que acompanhamos a história de Kichou, uma tayu, prostituta de alta classe que se encontra no topo da hierarquia do bordel onde oferece seus serviços. Vivendo dia após dia como a profissional do ramo mais cobiçada de seu bairro, ela não vê problema algum em ter que atender clientes de qualquer nacionalidade... até que sua vida se cruza com a de um homem que padece de uma grave doença — e a existência de ambos começa a tecer a mais secreta história de amor e morte. Uma trama com passagens ao mesmo tempo ásperas e cruéis, mas que também evoca uma beleza indelével, despertando um tipo de fascinação que só poderia ser causada pelo talento e sutileza de sua criadora.







O mundo secreto das gueixas se tornou algo glamourizado desde que começamos a ter contato com a cultura oriental. Mulheres que parecem de porcelana, cujos gestos e movimentos são tão precisos que são quase como uma performance, uma coreografia. Gueixas que sabem tocar um shamisen, preparar chás especiais e dominam a arte do encantamento. Embora gueixas não sejam necessariamente prostitutas, função essa que cabe às yuujos, elas vivem nesse mundo à parte do nosso. Mas, no fundo, são mulheres atormentadas por problemas mundanos como o pagamento de dívidas, a falta de uma família que seja capaz de sustentá-las ou outros problemas mais. Nossa protagonista é uma taiju, uma yuujo de luxo, a quem os homens desejam com todas as forças possuir e que possuem o domínio das artes que são realizadas entre quatro paredes.


Kichou é uma das taijus mais famosas do distrito de Maruyama. Sua fama a precede: uma mulher que apenas poucos homens podem possuir, dado o seu elevado preço. Mas, que se tornou uma lenda entre os homens de Nagasaki, que colocam todo o tipo de lendas em seus ombros como ela ser uma serpente, alguém que já voltou dos mortos mais graciosa do que antes ou que é capaz de fazer um homem não ser mais capaz de sentir prazer parecido com nenhuma outra mulher. Só que o Japão está em transformação com a chegada dos ocidentais, e Kichou é a única taiju local que atende diretamente na ilha de Dejima, onde se concentram holandeses e outros estrangeiros. Ela se tornou a mulher favorita do dr. Toon, um médico holandês que adquiriu uma adoração única por ela. Mas, Kichou esconde segredos de seu passado que podem afetar o seu trabalho.

A arte de Kan Takahama é de uma delicadeza ímpar. Seus traços finos e precisos se parecem com as de um mestre de caligrafia oriental. A maneira como ela é capaz de passar emoção através dos rostos dos personagens faz com que imaginemos que estes são reais. Por exemplo, Kichou é uma mulher melancólica, de expressões suaves, mas uma tristeza sutil que se esconde nos cantos de seu rosto. Tama é uma menina animada e energética que possui olhos curiosos e inteligentes capazes de captar tudo aquilo que está acontecendo ao seu redor. Já o dr. Toon é um homem pragmático, porém gentil que está apaixonado pela protagonista. Mas, é incapaz de percebê-la como uma mulher a ser possuída. Tudo isso somos capazes de deduzir através da arte e do contexto no qual os personagens são apresentados. Por outro lado, o cenário remete ao Japão do século XIX. A gente percebe o quanto eles remetem a filmes de época e procuram reproduzir o ambiente das casas de gueixas. Os objetos e cômodos são construídos com precisão e tudo no cenário mostra a personalidade daquele que habita o local. No caso do quarto de Kichou, as coisas são organizadas e bem distribuídas enquanto o do dr. Toon mostra o cômodo de um médico. Tem uma cena maravilhosa em que Kichou e Tama estão indo ao templo pegar um amuleto e chove nesse momento. Somos capazes de observar as gotas de chuva caindo delicadamente no guarda-chuva segurado pela protagonista enquanto as personagens à sua volta cochicham sem parar. É uma cena que mostra suavidade, tensão e melancolia ao mesmo tempo.


O roteiro criado por Kan Takahama é belo, triste e poético ao mesmo tempo. Vale destacar para a borboleta que está tanto na cena acima como no título do mangá. Ela possui um significado metafórico que é retomado apenas no final. A narrativa começa mostrando uma vida glamourizada de uma personagem que vive de vender o seu corpo, mesmo que por um alto valor. Se no começo tudo é belo e sedutor, aos poucos vamos percebendo o quanto a vida de Kichou é triste à medida em que ela vai mostrando como ela se tornou parte das mulheres do Maruyama. Somos colocados diante de uma mulher que quase foi salva pelo amor de sua vida, mas teve sua vida tragada de volta a esse lugar onde os sonhos são perdidos por aquelas que lá habitam embora elas transformem a vida de seus amantes em verdadeiros sonhos por uma noite. O pior é o julgamento que é feito sobre ela, algo que vai conduzir aos momentos mais dramáticos da história. Nos sentimos injustiçados assim como ela, mas observamos seu comportamento cândido e tranquilo diante daquilo. A personagem tem uma ideia de que não há mais uma vida para ela fora de Maruyama. Mesmo se ela tivesse a possibilidade de sair dali.

Se por um lado temos a vida de uma taiju, alguém que acaba se deitando com menos homens devido ao seu alto preço, por outro temos as suas companheiras que precisam encarar uma vida difícil. Muitas delas não possuem uma compreensão completa do mundo que as cerca, mantendo uma percepção mais simples sobre a vida. Sobreviver a mais uma noite com dinheiro no bolso é mais do que o suficiente a elas. Resta a elas apenas invejar a doce vida vivida por uma prostituta de alta classe. Com seus quimonos delicados, as preferências de estrangeiros, os doces recebidos. Enquanto que na passagem de seus dias, elas precisam pensar quando lavar seus cabelos, já que dá trabalho realizar seu penteado ou como agradar os homens, mesmo não tendo a beleza idílica de Kichou. Isso enquanto lidam com aspectos menos glamourosos de sua profissão como a presença das doenças sexualmente transmissíveis como a sífilis, que não possuía cura na época e podia certamente levar à morte.


Outra questão levantada pela autora é a chegada dos ocidentais no Japão e suas consequências sociais. Somos colocados em um período de transição em que os japoneses ainda estão lidando com a realidade gritante da Revolução Meiji. De um lado temos pessoas insatisfeitas com essa abertura, desejando o retorno aos preceitos tradicionais. Aqueles que são leais aos velhos costumes acabaram sendo obrigados a engolir os novos modos da sociedade. A abertura significou a mudança de pensamento. E toda e qualquer mudança é difícil de ser aceita em uma sociedade tão secular. Nesse momento da história vemos os estrangeiros habitando a ilha de Dejima, sendo que até mais ou menos o capítulo 7 eles ainda não se integraram a sociedade como um todo. Eles são vistos como alienígenas e estranhos em seus hábitos. Mesmo as gueixas não desejam atendê-los sendo que Kichou é uma exceção total à regra ao atender o dr. Toon em sua casa.


O Último Voo das Borboletas é um belo mangá produzida por uma autora que já recebeu inúmeros elogios da crítica. A narrativa é um pouco rápida demais e falta um algo adicional a ela para ser inesquecível, mas mesmo assim ela consegue emocionar e nos mostrar as dores e tristezas de uma mulher que precisou abdicar de muita coisa pelos seus objetivos. E que acabou julgada por parte da sociedade enquanto a outra a transforma em um ser além da compreensão. Uma mulher que está encerrada em um mundo de pó de arroz, festas diárias e a sedução de desconhecidos. Sem falar que o mangá consegue abordar temas históricos pertinentes. Um prato cheio para quem curte boas histórias.


Ficha Técnica:


Nome: O Último Voo das Borboletas

Autora: Kan Taahama

Editora: Pipoca e Nanquim

Gênero: Drama/Histórico

Tradutora: Drik Sada

Número de Páginas: 172

Ano de Publicação: 2020


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