Resenha: "Paraíso Perdido" de Pablo Auladell baseado na obra original de John Milton
- Paulo Vinicius
- 19 de jun. de 2018
- 5 min de leitura
Na quadrinização da obra clássica de John Milton, Pablo Auladell ilustra o embate entre as forças de Deus e de Satã envolvendo ainda Adão e Eva.

Sinopse:
Um clássico da literatura mundial adaptado pela primeira vez em uma graphic novel única e essencial. Há 350 anos, o conflito entre Deus e Satã narrado em Paraíso Perdido, obra-prima de John Milton, virou um marco na literatura. Seus dez mil versos sobre a criação do mundo, a tentação e o desejo por redenção receberam reconhecimento instantâneo e serviram de inspiração para peças de teatro, músicas, pinturas e livros, ecoando na obra de mestres como Mary Shelley, C.S. Lewis, Philip Pullman e Neil Gaiman. Agora, a obra colossal foi reimaginada pelo premiado ilustrador espanhol Pablo Auladell. Com seu traço sombrio, quase desolado, o tributo captura o lirismo de Milton para quem ainda não teve o prazer de ler os cantos originais. Ao mesmo tempo, complementa a experiência do leitor, dando ainda mais vida ao texto. A graphic novel inspirada na grande obra de Milton chega para fazer parte da linha DarkSide Graphic Novel numa edição que deixaria Adão em apuros, com capa dura, bordas douradas e todo aquele cuidado que os fãs já esperam — e merecem. Chegou a hora da redenção.
"melhor reinar no inferno que servir no céu"
Gosto quando a DarkSide Books lança obras provocativas. Ousadia. Paraíso Perdido é uma daquelas ousadias legais que a gente aplaude e pede bis. Uma obra de um artista não tão conhecido a partir de um clássico da literatura mundial. Aposto que se fosse outra obra publicada do Auladell no Brasil, não teria tido o mesmo impacto do que esta. O legal é que isso abre espaço para outros trabalhos do artista por aqui. Paraíso Perdido é impactante, é ousado e mexe com nossas crenças ao trabalhar uma história conhecida a partir de outro ponto de vista.
Antes de mais nada é preciso elogiar a bela edição da DarkSide. Não tenho dúvidas de que a HQ vai figurar na lista de melhores do ano de muita gente. A capa possui uma ilustração belíssima do Auladell, aliado a um formato europeu que ajuda demais a destacar as ilustrações do artista. A folha de guarda dá um aspecto de livro antigo assim como o papel pólen empregado na HQ. A escolha por uma alta gramatura dá a impressão de que estamos lendo um papiro antigo. Tem um texto do Auladell logo no início em que ele explica as dificuldades que ele teve para a produção desta adaptação. Vale a pena ler para entender como foi todo o processo criativo por trás de tudo.

O ponto alto do quadrinho é o traço do Auladell. Inicialmente tenho certeza de que os leitores vão ficar chocados pelos traços exagerados e obscuros empregados pelo artista. É bem diferente do padrão além da quadrinização que dá um efeito bem distinto. Falando da quadrinização é possível perceber a opção por poucos quadros: a maioria deles é em dois quadros por páginas, mas pode chegar a mais (oito quadros) ou a menos (página inteira). A opção por dois quadros vai muito no sentido arcaico que o autor quis dar à história. É como se fossem trípticos religiosos abordando cenas bíblicas. Nesse sentido o autor foi muito feliz e conseguiu captar bem a essência do que Milton passou através de seus poemas. Já o traço tem um quê de barroco. É possível perceber no olhar dos personagens sempre melancólico ou austero, os traços exagerados aliados ao tema religioso em si. Quando eu vi a imagem de Lúcifer imaginei logo as pinturas barrocas. O emprego de uma atmosfera sombria vista nos traços do autor ressalta isso. Os dois primeiros cantos se passam no inferno, então as cenas são sempre muito claustrofóbicas, repletas de sombras e trevas por toda a parte significando a desolação do inferno. Quando passamos para as cenas no céu, a palheta de cores puxa mais para um azulado com bege que mantém o estilo barroco, mas imprime algo mais angelical. Deus tem um aspecto duro, talvez seguindo a abordagem miltoniana. Outra referência interessante tem a ver com o aspecto de Eva. Me lembrou bastante algumas pinturas de Madonnas do século XVII. Mulheres de rosto angelical pintadas por homens como Raphael e Da Vinci.
"[...] ele que não pede De nós serviço algum a não ser este, Esta fácil tarefa, de entre as árvores No Paraíso que atam frutos doces Tão vários, não provar conhecimento de uma só."
Não cabe tanto eu discutir sobre a obra em si do Milton e eu vou preferir tocar na adaptação do Auladell a partir de duas vertentes: a narrativa e o desenho. Vários críticos de quadrinhos dizem que esta é a melhor adaptação de Paraíso Perdido. Não li outras, mas posso dizer que o artista captou fielmente a ideia por trás do clássico. Ele manteve as ilustrações de Milton e trabalhou muito mais as cenas partindo das descrições dele. Mesmo assim, a narrativa consegue capturar a atenção do leitor. Isso porque Auladell faz um trabalho sensacional entre poesia e texto ilustrado. A transição é muito boa e os quadros conseguem passar a atmosfera de desolação e perdição colocadas pela obra original. Até mesmo a abordagem de Lúcifer como alguém resignado a aceitar a si mesmo como um ser maligno demonstra na obra uma ausência de maniqueísmo. Lúcifer parece arrependido em alguns momentos, mas sabendo de seu papel no universo enquanto Deus é apresentado como um ser duro e atento às regras, muito no viés do que é apresentado no Antigo Testamento. O Deus do Antigo Testamento é normativo e pune aqueles que o desobedecem. Quando Milton escreve Paraíso Perdido no século XVII a crítica é feita diretamente à dinastia Stuart que estava no poder na época. Milton escreve sua obra às vésperas da Revolução Gloriosa, quando setores da sociedade inglesa se revoltaram contra a opressão da nobreza. Governar ou servir? Uma crítica presente aqui e captada bem por Auladell é de um Lúcifer crítico do nepotismo divino e de uma série de privilégios concedido a poucos. O artista conseguiu passar essa dualidade para o seu traço.

Por outro lado, o desenho consegue fazer a passagem do texto para o desenho. Teria sido muito mais complicado encher o quadrinho de textos, apenas repetindo os poemas de Milton. E temos trechos inteiros dos cantos 1 e 2 sem qualquer diálogo. Apenas as cenas são reproduzidas sequencialmente. Aliás, Auladell consegue empregar muito bem o sistema de ângulos de visão em que ele passa a visão das cenas para outros personagens presentes no cenário. Outro elemento digno de destaque é o combate campal entre as forças de Lúcifer e as tropas de Deus. Que combate é aquele??? Quando Deus envia o Cordeiro para abater os seus opositores, a batalha se torna uma carnificina. Algumas cenas são épicas como a do quadro acima. Depois o trecho da tentação da serpente à Eva é apresentada de forma magistral. Com bastante sutileza vemos como a personagem cai na lábia da serpente e acaba mordendo o fruto proibido.
Quadrinho sensacional, Paraíso Perdido é algo divino, fazendo um trocadilho. Uma transposição muito eficiente de um texto clássico e difícil para uma outra mídia que é a do quadrinho. A DarkSide presenteia seus leitores com uma linda edição e que vai estar na lista de melhores do ano de muita gente.


Ficha Técnica:
Nome: Paraíso Perdido Baseado na obra original de John Milton Artista: Pablo Auladell Editora: DarkSide Books Tradutor: Érico Assis Número de Páginas: 320 Ano de Publicação: 2018
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