Essa edição número 15 está incrível. Contos como Wonder, de Ricardo Santos e Cibersolitude de Thiago Lee tornam essa edição obrigatória para fãs de ficção científica. Sério... leiam.
Nesta edição temos os seguintes contos:
1 - "Você Está Morto, Jesse Danvers" (de Carol Peace)
2 - "Ipupiara" (de H. Pueyo)
3 - "Wonder" (de Ricardo Santos)
4 - "Passando pelo Rincão dos Infernos em direção ao Passo dos Enforcados" (de Nikelen Witter)
5 - "Cibersolitude" (de Thiago Lee)
6 - "O Meteoro de Rojanski" (de Thiago Loriggio)
Vamos às resenhas:
1 - "Você Está Morto, Jesse Danvers"
Autora: Carol Peace Avaliação:
Gênero: Ficção Científica
Espaços como o da Trasgo nos fornecem coisas interessantes como esta história. Isto porque a revista dá oportunidade aos autores de ousar, de testar coisas diferentes. E este conto escrito por Carol Peace é justamente isso: ousado.
Temos uma ambientação cyberpunk onde o nosso protagonista Gary vive em um condo. Seu trabalho é apagar os registros de pessoas que já morreram da rede. Uma vida medíocre em um apartamento minúsculo. Até que um dia um celeb cai em sua porta: um homem perfeito, cujas feições e até gestos foram programados no DNA para serem sedutores e instigantes. Jesse Danvers está morto, e não está ao mesmo tempo. Caberá a Gary sair de sua vidinha medíocre e tentar ajudar Jesse. Mas, parece que Gary, um homem que odeia celebs, está lentamente se apaixonando pelos encantos do celeb perfeito.
Carol Peace conseguiu me encantar com uma história que tem muitas semelhanças com Fluam Minhas Lágrimas, Disse o Policial. Na entrevista ao final da revista ela alega ter Philip K. Dick como inspiração. E isso é visto nas linhas: a ambientação pessimista, e até mesmo o fato de ela não ser tão futurista assim. O emprego de alguns elementos de pop culture sem deixar a história carregada. Gostei demais da maneira como a autora vai fazendo com que nos familiarizemos com tudo ao redor. E até gostaria de ver mais histórias neste tipo de ambientação.
Os personagens são bem redondinhos. O que me deixou mais feliz é como o personagem evolui ao longo da história. Ela obriga Gary a repensar os seus valores e isso em um curto espaço que é o do conto. Muitos autores sentem dificuldades ao apresentarem as motivações de seus personagens e fazê-los evoluir com o desenrolar dos acontecimentos. Aqui não. A autora consegue fazer isso de uma maneira muito orgânica. E o personagem de Jesse consegue manter o ar misterioso por boa parte da história. Não conseguimos saber exatamente o que ele planeja ou o que o rodeia.
Também palmas para a ousadia da autora ao escrever um conto queer em uma ambientação cyberpunk. Não é comum mesmo. E ela faz isso de uma maneira tão sutil que o leitor encara como algo completamente natural. Não achei nem um pouco forçado e na metade da história você já consegue perceber onde a relação entre os dois personagens vai levar. Recomendo bastante a história por ela ser boa e por fugir do lugar comum.
2 - "Ipupiara"
Autora: H. Pueyo Avaliação:
Gênero: Fantasia
A quantidade de autores que vem trabalhando com mitos brasileiros ou uma ambientação histórica tem aumentado. Fico feliz de estar vendo que os nossos autores tem percebido que é possível sim escrever histórias que se passam no Brasil ou que usem elementos do folclore nacional ao invés de recorrer à muleta que é a literatura fantástica europeia. H. Pueyo conseguiu me surpreender justamente por eu não conhecer o mito do ipupiara. De fato, conhecemos mais sua irmã, Iara.
Isidoro é um coletor de impostos a serviço da coroa que teve alguns problemas no seu retorno à vila. Seu cavalo machucou a pata e ele agora depende do caboclo Andirá para ir rapidamente buscar alguém que possa consertar o cavalo. Mas, Andirá pede a Isidoro que não saia daquela parte da floresta porque forças poderosas habitam o lugar. E estas forças estão famintas.
Pueyo escreve uma narrativa em terceira pessoa que é bastante visual e descritiva. Em contos de terror é preciso fazer com que o leitor sinta na pele aquilo que está acontecendo aos personagens. Se o autor não for capaz de transmitir a tensão para além das linhas, o terror perde o seu efeito de assustar. E Pueyo consegue transmitir isso com muita habilidade. A gente se sente no meio de uma clareira em que olhos parecem espreitar de cada canto escuro. Eu imaginei que o que aconteceria a seguir seria um encontro com a tal criatura, mas a maneira como a autora transmite a cena é inacreditável. De fato é assustador.
Gostei muito do ritmo da história. Lenta, progressiva e imersiva. O personagem é um antiherói, nitidamente. Ao mesmo tempo em que o terror é de origem sobrenatural, parece um pouco como se a natureza estivesse atacando o homem por estar invadindo o seu espaço. O medo do protagonista é muito palpável à medida em que a história vai progredindo. O que eu acho interessante nesta reflexão sobre invadir o espaço natural é como o ipupiara faz uma crítica ao conjunto de valores do português. O que os europeus viam como bárbaro apenas era o diferente. A música tocada podia sim ser apreciada, mas durante a colonização só se procurou homogeneizar os povos de forma a facilitar o domínio.
Enfim, esta é uma história altamente recomendada para os fãs de terror. A autora tem uma mão muito boa para captar tensão e medo. Espero mesmo poder ver outras coisas dela.
3 - "Wonder"
Autor: Ricardo Santos Avaliação:
Gênero: Ficção Científica
A ficção científica serve para que a gente especule determinadas questões da nossa sociedade a partir de um outro prisma. Através de Wonder, Ricardo Santos faz esse exercício de uma maneira incrível.
Vemos um pai contando a história do nascimento de seu filho a ele. como foi descobrir que ele era um wonder, ou seja, uma criança com uma inteligência superior mesmo a superdotados. E aqui é preciso relacionar a sinopse da história à narrativa porque elas são indissociáveis. Este é um mundo assim como o nosso com a exceção da existência dos wonders. O autor faz a construção do mundo de maneira perfeita mostrando como eles interferiram com o desenvolvimento da sociedade e até mesmo aqueles que se voltaram contra o status quo.
O dilema aqui é muito real: o de um pai preocupado com o futuro dele e de sua esposa após o nascimento de um filho. O que mais chama a atenção é como a história é completamente verossímil. Colocando os elementos fantásticos à parte, todo o pai e toda a mãe passam pelas mesmas situações. A maneira como ele descreve coisas comuns como as dores, as dúvidas e as inquietações é incrível. Talvez este seja o apelo mais forte da história que é o de se ligar tranquilamente a qualquer um de nós a partir de uma situação real.
O pai e a mãe são personagens bem redondinhos. A narrativa é feita em primeira pessoa como se fosse um relato feito pelo pai a seu filho. Claro, existem algumas inconsistências, elementos de enredo que acabam se tornando essenciais para formar a narrativa. Por exemplo, ao contar uma história, ninguém reproduz perfeitamente um diálogo, então fica estranho quando eu vejo um travessão, compondo o início de um. Teria sido melhor para o autor manter o aspecto descritivo e, ao invés de usar diálogos, preferir um discurso indireto. Teria dado um efeito bem melhor à narrativa. De qualquer forma, Wonder foi um dos melhores contos que eu li esse ano. Tanto em escrita como em conteúdo.
4 - "Passando pelo Rincão dos Infernos em direção ao Passo dos Enforcados"
Autora: Nikelen Witter Avaliação:
Gênero: Terror
Uma das coisas que eu mais gosto no gênero do terror é quando ele consegue ser realista ao máximo. Contar determinadas situações insólitas repletas de elementos sobrenaturais que acontecem quando estamos em lugares e situações estranhas. Essa é a proposta de Nikelen Witter que constrói uma narrativa que parecem aquelas histórias que contamos ao redor de uma fogueira ou no escuro.
Cadico e Betão estão se dirigindo a algum lugar de carro e, no meio de seu trajeto, acabam ficando sem gasolina. Eles acabam saindo do carro e entrando no Rincão dos Infernos em busca de alguém que tenha um pouco de gasolina para que eles possam retomar o seu trajeto. Só que quando eles chegam ao Passo dos Enforcados, um lugar que se diz assombrado por estranhas histórias de bruxas. Ambos não dão importância, mas será mesmo que as histórias são bobas?
Uma coisa que mais me despertou atenção nesta história é a escrita da Nikelen. Uau. Os diálogos são muito realistas. Eu lia o conto e conseguia imaginar perfeitamente os personagens. São diálogos que a gente realmente teria com uma pessoa. Essa verossimilhança é difícil de recriar em uma história porque de certa maneira toda narrativa tem um pouco de teatralidade, de dramaticidade. É quase impossível não forçar um pouco a mão. E aqui eu não senti isso. Fora que a autora empregou elementos regionalistas na fala dos personagens o que dá todo um charme por si só porque localiza a narrativa. Curiosamente esta é uma daquelas narrativas que, mesmo tendo alguns elementos que eles falam que datam quando se passa, podem ser atemporais.
O tema da bruxaria tem retornado às mentes dos nossos autores de terror. Tenho visto vários escrevendo histórias bem originais neste gênero e buscando reinventar o mito. Algumas destas histórias são bem gore. Aqui nem tanto e acho que essa é a minha única reclamação em relação ao conto. Acho que a autora poderia ter explorado mais os elementos de terror da trama. Sei que o espaço era curtinho, mas, sei lá, fiquei com aquele gosto de quem queria mais um pouquinho. Por outro lado, a construção da tensão e o crescendo do medo na narrativa são feitos de forma exemplar. É aquele conto em que o mal espreita em cada esquina e você, leitor, sabe que alguma coisa muito ruim está prestes a acontecer. Novamente: adoro este tipo de história.
Para quem curte uma boa história de terror, Nikelen Witter te traz um prato cheio! Com uma boa construção de medo e personagens muito realistas, a história vai te deixar com um pouquinho de medo à noite. Estão preparados para entrar no Rincão dos Infernos?
5 - "Cibersolitude"
Autor: Thiago Lee Avaliação:
Gênero: Ficção Científica
Cibersolitude é a apresentação de um cenário para o leitor. Temos uma protagonista chamada Goshka que sofreu várias modificações cibernéticas pelo seu corpo e agora é caçada no planeta em que se encontra. Vamos vendo Goshka tentando lutar contra os seus implantes cibernéticos que vão tentando minar a sua persona, pois estes tem vontade e objetivos próprios. Adorei essa subversão do gênero. Não vemos muitos contos com andróides (pelo menos eu não me lembro de ter lido um recentemente) que trate modificações como desvantagens ao invés de um plus para o personagem. De forma alguma a protagonista possui uma vantagem sobre os inimigos: dispor de órgãos artificiais só lhe traz problemas ao longo de todo o conto.
Não sei se foi algo planejado, mas o autor deu uma cara de technofantasy ao conto que eu adorei. Ele mescla elementos fantásticos com ficção científica de uma maneira que você nem sente muito a presença de um ou de outro. Gosto demais desse tipo de trabalho mais experimental. Ao mesmo tempo o cenário em que ele coloca a protagonista é desolador. Ela está sozinha de tudo e de todos, e o que ela tem em seu caminho são apenas caçadores atrás do que ela tem a oferecer para eles: uma recompensa e talvez alguma coisa que eles possam tirar dela.
O que eu mais gostei na história foi a maneira como o autor usou a questão dos implantes cibernéticos para criar um drama existencial. Isso porque para que a personagem consiga não ceder à programação dos implantes, ela precisa elevar sua humanidade. Seja se lembrando de acontecimentos passados ou até mesmo entrando em contato com a família. Este é até um momento bem sensível na história em que o autor dá uma quebra total na ação frenética que estava acontecendo para mostrar algo realmente importante para a protagonista.
Enfim, recomendo bastante essa história. Tenho certeza que vai agradar a todos os leitores, sejam vocês fãs de fantasia, de ficção científica ou apenas de uma boa história.
6 - "O Meteoro de Rojanski"
Autor: Thiago Loriggio Avaliação:
Gênero: Ficção Científica
Algumas das melhores histórias de ficção científica são aquelas que lidam com o que nos faz humanos. Mesmo diante de um cenário futurista ou que se passa nas imensidões da galáxia, o que faz o ser humano evoluir. Diante de todas as probabilidade e de todas as tragédias, o homem pode ser capaz de superar a tristeza para transcender e buscar algo além de si mesmo. É com esse mote que Thiago Loriggio nos mostra um cenário onde um meteoro se tornou uma fonte de energia para a Terra. Mas, a tristeza de alguns poucos homens os leva a tomar uma decisão terrível diante de um acontecimento iminente.
Tudo começa com a vinda de um meteoro em direção à Terra. Graças a uma tecnologia avançada, um grupo de cientistas desenvolveu uma forma de capturar um tipo específico de meteoro que foi capaz de alimentar por várias gerações o planeta. Esse equipamento serve também para afastar possíveis meteoróides capazes de causar danos no planeta. Mas, este meteoro que se aproxima parece ter vida própria: todas as vezes em que foi tentado o desvio de sua trajetória, ele a modifica ou até acelera, deixando Xavier, um dos responsáveis por lidar com este tipo de problema, confuso. Ao procurar os seus outros companheiros de laboratório, ele recebe várias negativas dos mesmos em ajudá-lo e vai precisar resolver o problema por si mesmo.
Admito que encarei esse conto de uma maneira que não tinha nada a ver com o que o autor quis apresentar. Até peço desculpas ao autor pela interpretação bizarra da história (provavelmente essa má interpretação afetou a minha avaliação). Eu imaginei em um primeiro momento que os quatro cientistas fossem representações da personalidade do protagonista por conta de várias semelhanças entre suas histórias. Até imaginei que o contato com a antimatéria tivesse de alguma forma deturpado a mente de Xavier. Isso acabou me decepcionando um pouco quando me dei conta de que tal não era o caso. Novamente: peço desculpas ao autor por ter viajado completamente na batatinha.
Porém, o grande trabalho do autor está na construção muito verossímil de personagens. Aqui não temos heróis ou vilões, apenas cientistas que passaram por tragédias pessoais e que não foram capazes de seguir adiante. Xavier é o mais ativo dos quatro tendo ainda algum instinto de sobrevivência. Matsushiro é alguém que passou a se focar inteiramente em suas pesquisas; Kosuke se escondeu em uma realidade virtual onde ele revive momentos do passado; Yin decidiu superar sua tragédia através da meditação profunda e O Alternador é alguém que constrói coisas o tempo inteiro. São personagens extremamente complexos e repleto de nuances. Na segunda metade da história, após conhecermos mais de suas motivações é o momento em que a história caminha e conseguimos ver aonde o autor quer chegar.
Vale a pena destacar que esse é um conto de ficção científica hard contendo vários elementos científicos sobre a trajetória de meteoros. Não chega a ser algo chato, pois o autor consegue dosar bem estes momentos explicativos com o desenvolvimento da narrativa. Nesse ponto o autor foi muito feliz. O conto é um pouco maior do que os demais contos da coletânea, mas não senti que houve uma barriga. Muito pelo contrário, a história fluiu muito bem. Trata-se de uma narrativa em terceira pessoa, mas com um foco em Xavier e em suas explorações. O encadeamento de palavras também é muito bom.
Só me ressenti um pouco do final. Achei ele um tanto confuso. Eu entendi a história até mais ou menos 85% (tirando a conclusão bisonha que eu tive), mas a partir daí me pareceu que os acontecimentos foram se empilhando um em cima do outro muito rapidamente. Isso fez com que eu me perdesse um pouco ao final. Cheguei até a reler esse trecho duas vezes para ver se eu captava o que estava acontecendo, mas fiquei apenas no em parte mesmo. Achei que a mudança de pacing foi muito brusca, não combinando com o que o autor propôs em um primeiro momento. Preferia o ritmo mais contemplativo do começo da história. Mesmo assim, o conto é uma experiência fenomenal daquilo que existe de melhor na ficção científica.
Ficha Técnica:
Nome: Revista Trasgo vol. 15 Organizado por Rodrigo van Kampen
Número de Páginas: N/I Ano de Publicação: 2017
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