Em uma coletânea de histórias que se passam em lugares como um futuro próximo no Centro-Oeste brasileiro, em uma noite regada a muita música, em uma estranha empresa onde as horas parecem nunca acabarem ou em uma conferência sobre energia atômica, Thiago vai discutir temas como arrependimentos, traições, descobertas e tanto do que faz nossos corações baterem mais forte.
Sinopse:
Mesmo as mais áridas histórias de ficção científica que se passam em tempos e planetas distantes são feitas de gente. E pessoas se relacionam.
Conhecer romantasias, histórias que unem romance e fantasia, me fez pensar em romantífica: romance + ficção científica. Relacionamentos — e histórias — ainda serão feitos de gente quando for impossível distinguir uma inteligência artificial de um humano ou quando seu par perfeito puder ser construído via robótica ou engenharia genética?
Daí surgiram estes contos, alguns como reflexão, uns como brincadeira, outros como ansiedade. Boas-vindas à Romantífica.
O gênero de romantasia vem se tornando muito popular no Brasil nos últimos anos. Para quem não conseguiu associar o que é o gênero aos temas que ele aborda, é algo bem simples: geralmente são narrativas voltadas para relacionamentos que empregam a literatura de gênero como um cenário. As narrativas podem ou não conter situações de maior ou menor violência dependendo do autor. Entre alguns dos títulos mais famosos nesse estilo do momento estão The Fourth Wing, da Rebecca Yaros, ou A Sociedade de Atlas, da Olivie Blake. Mas, estamos aqui para falar dessa bela coletânea do Thiago Lage. E, ele vai mais para a linha da ficção científica do que para a fantasia no geral. Em algumas delas, ele vai empregar um cenário brasileiro, mas nem sempre apontar o cenário vai ser importante para aquilo que tem a dizer. Nas histórias, ele vai procurar te dar as condições necessárias para que você compreenda o que precisa saber sobre o nível tecnológico ou o contexto em si. Na maior parte das vezes vai funcionar muito bem e o leitor vai conseguir levar numa boa.
O estilo de escrita do Thiago vai variar de acordo com a narrativa. Algumas de suas histórias são mais reflexivas, com os personagens precisando lidar com alguma mudança em suas vidas ou rememorando o seu passado. Nesse caso, as narrativas serão repletas de parágrafos contendo fluxos de pensamento ou descrevendo momentos/emoções. Em outros contos, teremos um foco maior nos personagens envolvidos na história, com diálogos rápidos. Admito que não sou fã desse emprego de diálogos, em grande quantidade, porque sempre acho que é possível suprimi-los com verbos de ação (concordo, nego, meneio a cabeça, fecho os olhos). Mas, para o que o autor quer alcançar naquele conto em específico, funciona até certo ponto. Alguns contos são maiores como o primeiro, Malus Restituta, e o último, A Cidade do Átomo, mas alguns são quase como micro-contos. Então tem histórias para todos os gostos. Não senti nenhum problema com emprego de jargões ou alguma coisa específica. Quando Thiago cria alguma tecnologia ou expressão específica em uma história, ele explica bem para o leitor qual é a sua função ou utilidade.
Selecionei algumas das histórias para tecer alguns comentários. A primeira delas é a primeira mesmo. Em Malus Restituta temos um personagem chamado Rubens que retorna ao Brasil depois de muito tempo na Europa. Ele era envolvido com Flávio, o amor de sua vida. Mas, sua vontade de continuar seu trabalho e algumas discordâncias entre o casal os fizeram se distanciar até uma eventual separação. Rubens fez uma série de procedimentos estéticos nesse mundo futurista para estender sua vida. Um mundo que foi afetado pelo clima e fez com que vários vegetais que faziam parte de nossa alimentação desaparecessem e tivessem que ser substituídos por versões mais sintéticas. Thiago discute temas bem caros ao meio ambiente que tem sido levantados como o empobrecimento dos solos, os efeitos nocivos das alterações climáticas, a exploração nociva do agro versus uma produção mais tradicional. E em como o desaparecimento de produtos que temos como normais pode significar uma mudança drástica na maneira como nos relacionamos com os alimentos.
Mas, Malus Restituta não é apenas isso. É a história de um doce amor do passado que foi afetado pelas intempéries que a vida nos apresenta. Afinal, nem sempre somos maduros o suficiente para lidarmos com determinadas situações. Nos falta a sensação de perda e saudade que faz com que lutar um pouco mais por uma pessoa possa valer mais a pena. Ou apenas uma situação não é possível de ser contornada, mas pode ser revisitada mais tarde. Às vezes somos como maçãs: ainda verdes, não estamos próprias para apresentarmos nossa verdadeira doçura. Somente quando vermelhas e prontas para colheita é que iremos mostrar o quanto somos saborosas. Na narrativa, Thiago emprega flashbacks e retornos ao presente para nos contar como foi a relação entre Rubens e Flávio. A passagem temporal está muito boa e os cortes são bem realizados e o leitor consegue entender bem quando se trata do passado e do presente. O problema todo é o começo que é um pouco truncado e demora algumas páginas para que o leitor realmente consiga entrar na trama. Mas, depois a história consegue fluir numa boa.
Como segunda história queria trazer Hoje à Noite uma linda narrativa que mostra duas pessoas se encontrando e se descobrindo da maneira mais improvável possível. Márcio foi levado por seus amigos a uma ilha para curtir uma boa balada. Mas, essa ilha tem um sinal de celular fraco e tudo depende ali da relação tete-a-tete. Márcio se sente meio deslocado, já que esse tipo de festa não é bem a sua praia (sem trocadilhos, já que a festa se passa em uma praia). Ele tenta se enturmar e buscar conhecer alguém até que encontra Telúrio, um garoto com quem as coisas parecem acontecer de maneira tão rápida e natural que quando ele vê, está envolvido com ele. Os dois estabelecem uma conexão, mas Márcio parece ter vergonha do que as demais pessoas podem achar de ele estar se envolvendo com outro menino. Nessa indecisão de estar junto ou não, os dois vão a um lugar sozinhos e vão viver a noite de suas vidas. Essa é uma bela história em que Thiago consegue trazer para o leitor todas as angústias e inseguranças de Márcio e em como ele precisa lutar para superar seus próprios preconceitos. A narrativa é repleta de belas mensagens e a virada narrativa ao final é bem legal. Não vou comentar muito para não dar spoilers.
Vou fechar comentando sobre um conto curtinho chamado Banco de Horas. Tentarei não entregar muito sobre ela, mas vai ser uma missão bem complicada. Rita e Felipe trabalham em uma empresa que desenvolve marketing para outras empresas. Em uma tarde normal em que o trabalho acontece de sua forma mais cotidiana e corriqueira possível, acontece uma tempestade iônica fora da empresa que obriga todos a permanecerem presos lá dentro até que esta passe. A perspectiva é precisar permanecer até o dia seguinte e Rita e Felipe ficam irados de ter que fazer cerão. É combinado que eles podem receber por essas horas extras ou apenas compor um banco de horas a ser usado depois. A narrativa vai se debruçando sobre as atividades dos funcionários, principalmente dos protagonistas, dentro desse pequeno espaço. O conto é associado imediatamente a um famoso filme natalino que não vou comentar qual é, mas as críticas que Thiago faz ao longo da história me fizeram pensar em Tempos Modernos, do Charlie Chaplin. Isso porque o trabalho se torna uma coisa estupidamente redundante dos quais os funcionários perderam a noção completa da utilidade do que estão fazendo. Em um capitalismo cada vez mais mordaz e alienizante. uma narrativa como essa apenas preconiza o que as relações de trabalho podem se transformar no futuro. Foi um dos contos que mais gostei dessa coletânea.
Thiago desenvolveu um trabalho muito legal nessa coletânea. Gosto de como ele envolve o leitor com propostas que, por vezes, são bem simples, enquanto outras envolvem um bom nível de maturidade para entender aonde ele deseja chegar. Nem todas as histórias vão agradar a vocês, e tudo bem. Essa é a beleza de uma coletânea de contos. São diferentes sabores dos quais vocês poderão inclusive perceber diferentes facetas do autor. Para mim, um belo trabalho de apresentação do que ele pode fazer. Os assuntos são bastante atuais enquanto outros são atemporais.
Ficha Técnica:
Nome: Romantífica
Autor: Thiago Ambrósio Lage
Editora: Urutau
Número de Páginas: 112
Ano de Publicação: 2023
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