Jefferson Costa nos conta algumas histórias de sua família que vivia no nordeste. Histórias repletas de verdades incutidas em cada linha com uma sensibilidade ímpar. Vamos ver os amores, os ocasos, as perdas, as conquistas e a luta diária por um futuro melhor.
Sinopse:
Baseado em lembranças coletivas e individuais, na oralidade, e em contos e “causos” que são passados de geração em geração, Roseira, Medalha, Engenho e Outras Histórias é um relato emocionante sobre a luta de pessoas reais vivendo uma vida duramente real.
Acompanhe a trajetória de duas famílias às voltas com suas diferenças, tragédias e comédias, sonhos e perspectivas, construindo a sua história no sertão nordestino durante o movimento retirante da década de 1970. Ao introduzir um Brasil bem diferente daquele que se vê nas áreas urbanas, permeado pelo cangaço e negligenciado pelos que detêm mais privilégios, este quadrinho pinta com cores fortes e exuberantes muitas das características nordestinas tradicionais, como o folclore, os engenhos de cana de açúcar, os “cabras machos”, a busca por rastros e pegadas de uma herança ancestral e as relações humanas que se desenvolveram em torno da cultura que ali se estabeleceu.
Assim como as histórias de nossas famílias, nunca as conhecemos na ordem como elas aconteceram. São sempre fatos que puxam ideias e acontecimentos que se sucederam ao longo de várias décadas. Como um bom contador de histórias, Jefferson Costa nos apresenta à história de sua família que viveu no interior do nordeste em Várzea da roça. Ali somos apresentados a todo um elenco de personagens como Zeca, Vaninha, Cotia e tantos outros. Em suas histórias veremos a busca diária pela felicidade e pela sobrevivência diante de todos os obstáculos que a vida pode apresentar. Encarar a fome, a falta de oportunidades, a frustração de um negócio que não deu certo ou até acidentes que podem tomar uma vida jovem. Tudo isso está presente nas histórias apresentadas por Jefferson Costa onde ele irá nos presentear com os relatos íntimos de uma família que sempre buscou perseverar e seguir em frente mesmo quando os obstáculos eram enormes.
Para aqueles que conhecem Jeremias - Pele e Jeremias - Alma a arte do Jefferson é bastante particular. Sua apresentação de personagens bebe de uma conexão com a realidade que é incrível. Ao mesmo tempo, ele sempre consegue inserir algum elemento insólito em seus quadros, seja com uma deformação ou uma refração da luz diferente que torna o que está sendo visto no quadro diferente do que deveria ser. É como se a arte do Jefferson fosse a arte do Jefferson. Não há outra pessoa capaz de fazer o que ele faz porque seus traços, formas e angulações são particulares. Mais do que nas histórias do Jeremias pela Graphic MSP, aqui suas páginas são muito livres, o que dá uma impressão maior a respeito do que ele consegue fazer artisticamente. Não parece um cenário inspirado em alguma, parece uma informação das memórias do artista. Tudo é mais verdadeiro porque existe uma aura de afetividade que permeia o que está sendo desenhado. Para mim, a arte específica do Jefferson casou perfeitamente com a história que ele queria contar. Não consigo imaginar outra pessoa desenhando esse quadrinho. Jefferson dosou bem os momentos em que ele deveria ser prolixo e os que a arte precisava brilhar mais. Tem um momento mais para o final em que os balões de fala são bem escassos. É um momento em que devemos observar os quadros (que são grandes, por vezes de página inteira) falarem por si sós.
Ao que ficou claro no posfácio, essa foi a primeira vez em que Jefferson Costa fez o roteiro e a arte de um quadrinho sozinho. Sem companheiros. Isso pode ter ajudado no sentido de que essa é uma história que precisava ser contada por quem a ouviu ou a experienciou. Temos um caleidoscópio de histórias que se alternam uma após a outra. Elas não seguem exatamente uma linearidade, mas é possível compreendê-las numa boa seja a partir do jogo de cores, da mudança de tema ou com um simples recordatório. Não fica complicado para o leitor entender o que está acontecendo. As narrativas vão ganhando mais e mais detalhes à medida em que vão se sucedendo. Algumas delas são bem pequenas e acabam rápido enquanto outras seguem conosco até o final. Todas são bem amarradas e algumas tem um final mais aberto, deixando para a interpretação do leitor. Há uma progressão e desenvolvimento dos personagens que é bem nítida, principalmente nas três histórias principais: a de Vaninha, que busca o sonho de poder estudar e se tornar professora; ou a do jovem menino que foi para a cidade estudar em um colégio interno, mas que a vida acabou lhe dando um revés; e Zeca e Cotia, a mãe e o pai que precisam superar todas as adversidades que lhes apresentam.
Adorei que o Jefferson manteve a forma de falar das pessoas que viviam na região. Até porque ninguém fala de forma erudita o tempo todo. Quando reproduzimos a forma de falar autêntica das pessoas, damos ao leitor um grau de verdade maior ao que está sendo narrado. Existe a forma de falar, os sentidos secretos escondidos nas frases, a familiaridade do tratamento. Tudo embutido numa simples frase emitida através da sonoridade. Jefferson também insere trechos de cordéis que servem para oferecer pistas do que vai acontecer a seguir, oferecem um clima para podermos acompanhar a vida dessas pessoas ou mais para oferecer um espectro de abstração e imaterialidade ao que está acontecendo na história. Até porque a escrita de cordel brinca com nossa percepção e nossa capacidade de compreender elementos simbólicos. Vale destacar também a presença de alguns trechos do Adinkra de origem africana. Isso porque o autor vai trabalhar bastante a questão da ancestralidade.
E por falar nela, a ancestralidade está na própria razão de ser daquilo que está sendo contado aqui. Um dos propósitos da existência de um griot, ou seja, de um contador de histórias é manter a memória viva daquilo que já aconteceu na história de um grupo de pessoas. O que Jefferson faz aqui é justamente isso. Lembrando que um griot é alguém que conta histórias a um público que precisa ser mantido cativo em suas descrições e narrativas. Ou seja, o griot pode exagerar nas histórias ou inserir elementos insólitos ao que está contando. Não se trata de uma mentira necessariamente, mas de um exagero para que o público fique surpreso, tenso, consternado ou atento. Na fala de um griot, existe uma preocupação com o ritmo, a entonação, a cadência. As frases parecem estar sempre certas, como se o propósito de existir delas é estar uma após a outra. Essa busca pela ancestralidade leva o narrador a mergulhar fundo nas histórias de seus familiares que podem ser situações do cotidiano, dramas familiares ou até narrativas insólitas como quando o menino vai a floresta catar um caju em uma árvore que se diz ser amaldiçoada por fantasmas.
Acompanhamos toda a dificuldade de vida dessas pessoas. Como Zeca e Cotia que sempre tiveram problemas para se casar já que o pai de Cotia entendia Zeca como um malandro e alguém que não merecia ter a mão de sua filha. Zeca procurou investir sua vida para melhorar a vida de seu povoado, fazendo negócios que eram arriscados e o colocou em situações bem complicadas. Ele buscava a todo custo conseguir o respeito e a admiração de seus pares. Só que a vida provoca acidentes e para alguém que arrisca tanto, as perdas podem ser incomensuráveis. Já Cotia é uma mulher endurecida pelo sol do nordeste, precisando cuidar de seus filhos enquanto espera o marido retornar de seu trabalho. Essa espera pode ser árdua e levar a momentos difíceis onde ela precisa de toda a sua força para poder continuar vivendo. Mesmo asssim, ela consegue criar seus filhos e passar valores a eles. Gosto de pensar em Zeca e Cotia como uma família de verdade, não dessas famílias de margarina que vemos em outras histórias. Afinal, nem tudo na vida são flores e em vários momentos passamos por situações difíceis que nos tiram o chão. O importante é nunca nos deixarmos abalar pelas rasteiras que a vida nos dá.
E por falar em dificuldades precisamos falar de Vaninha que é uma menina que vai em busca de estudos. Mas, a falta de oportunidades em educação no lugar onde vive se coloca como um enorme obstáculo a ela. Graças à sua dedicação algumas portas se abrem, mas para alcançar seus objetivos ela precisará fazer alguns sacrifícios. Ou o menino que pensava estar com a vida encaminhada ao seguir para uma cidade onde oferecia mais opções, mas que se vê retornando ao seu lugar de origem em uma situação pior. Para precisar sobreviver, vai ter que deixar de lado o mundo mágico das palavras que lhe foi apresentado outrora. São duas vidas que são colocadas lado a lado e que cujo desenvolvimento oposto é bastante interessante porque mostra que a vida real é muito mais dura do que parece. Nem sempre é possível alcançarmos aquilo que desejamos e nos tornamos reféns daquilo que nos é apresentado. Resta a nós lidar com dignidade com o que nos é dado.
Roseira, Medalha, Engenho e outras Histórias conquistou o meu coração pelo sentimento e pela verdade que é apresentada em suas páginas. Seus personagens são tão reais que eu poderia imaginar cruzar com eles na rua, embora eles morem longe demais de mim. Suas narrativas de vida podem ser associadas às dificuldades de pessoas que já passaram por esses momentos em suas vidas. Quando buscamos nossos antepassados, seguimos em busca dos pequenos tijolos que constituem as fundações de nossas existências. Ao entrarmos em contato com suas vidas, não parecemos tão sozinhos no mundo e compreendemos que nossas vidas estão entrelaçados por fios que se estendem por décadas e mais décadas de esforço, suor e sangue que foram derramados na Mãe Terra. Se vale a pena leitura? Com certeza.
Ficha Técnica:
Nome: Roseira, Medalha, Engenho e outras Histórias
Autor: Jefferson Costa
Editora: Pipoca e Nanquim
Gênero: Ficção
Número de Páginas: 224
Ano de Publicação: 2022
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