Um grupo de clones foi enviado a um planeta chamado Próxima B para preparar o lugar para a chegada de seus originais. Conflitos começam a acontecer quando um destes clones parece ter duas consciências e uma série de assassinatos abalam o próprio projeto.
Sinopse:
Na sexta visão do futuro, a humanidade se espalha pelo espaço fugindo da extinção de seu próprio sistema. Então, a primeira colônia fora do sistema solar era para ser a utopia definitiva. Ao longo da viagem 24 embriões-clones se desenvolvem ao longo da viagem, carregados com as memórias de suas pessoas originais. No entanto, uma mulher não acorda enquanto dois homens dividem segredos que podem mudar o destino da colônia. Ao mesmo tempo, a morte começa a ceifar vidas na nova comunidade, uma a uma.
Talvez a melhor palavra que defina esse livro seja definições. Como definimos uma vida? Um gênero? Uma pessoa? Nesse romance scifi que se passa em outra galáxia, Liu, um clone criado com incríveis habilidades de programação, precisa lidar com uma realidade: dentro de seu corpo, habitam duas consciências. Uma que pertence a ele mesmo e outro que deveria pertencer a Dira, uma das outras clones que tem a incumbência de ser uma das biólogas do projeto. De algum jeito, suas memórias e experiências foram implantadas na cabeça de Liu enquanto que seu corpo permanece inerte na ala médica do projeto. E Liu precisa lidar com a realidade de não saber se é um homem ou uma mulher, ou alguma outra coisa. Isso sem falar na necessidade que tem de esconder esse problema do resto dos outros clones. Teo, o médico do projeto, quer saber por que Liu visita quase que diariamente o local onde Dira se encontra. Que relação eles tinham antes de serem enviados nessa jornada? A pressão de Teo se torna um incômodo cada vez maior, esquecido apenas após o início de uma série de assassinatos dos líderes rotativos do projeto. Quem estaria cometendo tais atrocidades e o que Liu e Dira tem a ver com isso?
Como dizia acima, definições é o que move a narrativa adiante. Liu se perde em uma série de indagações tentando entender quem é. Seria ele como o seu original na Terra, um racionalista pragmático ocupado com a vistoria das IAs que administram o projeto? Ou seria como Dira, quente, emotiva e genial, buscando realizar aquilo que ela entende como justiça? Seu coração não consegue chegar a um consenso e essa batalha, Liu/Dira levará ao longo da narrativa. O que fica claro na escrita de Nikelen é que parece que buscamos rotular as coisas com uma necessidade obsessiva. Tudo precisa fazer parte de uma listinha de característica, parecendo que desejamos atender às previsões de um horóscopo. Só que nos últimos anos e com uma maior liberdade para discutir gênero e sexualidade, passamos a compreender a fluidez envolvida nisso. Não é possível mais ficar em um maniqueísmo de gênero sendo que é possível expressar sua real natureza de inúmeras maneiras possíveis. No caso vivido por Liu/Dira não importa qual a expressão sexual delu, até porque não faz muito sentido lógico. É um personagem que não se enquadra em nenhuma das definições de homem/mulher, sendo algo completamente não definido, e está tudo bem não poder definir. Nikelen consegue passar muito bem essa dúvida do personagem, e é um dos pontos altos da narrativa de Silêncios Infinitos. Essa dúvida que corrói a alma de Liu/Dira e que no fim das contas não era necessariamente uma dúvida. Quando a dúvida deixa de ser uma dúvida e dá aquele estalo de "por que estou realmente me preocupando com isso?" é que o personagem consegue se livrar de seus grilhões.
Mas, a definição não está apenas na questão de gênero, mas no que é uma vida. Um clone pode ser considerado uma pessoa independente? Uma vida por si só ou é apenas a cópia de uma vida? Os clones do projeto possuem essa dúvida e tentam emular comportamentos de seus originais. Aliás, para o benefício do projeto, os clones masculinos passaram por toda uma reprogramação contendo seus espíritos mais violentos. Com exceção dos clones femininos porque se entendeu que um espírito mais livre delas ajudaria em sua criatividade. O que vemos é uma existência bastante robótica, desprovida de traços de criatividade e livre-arbítrio. Liu/Dira, por terem uma quebra em sua programação, servem como pontos de inflexão apontando as contradições. Quando o enredo do assassinato toma forma, vemos como os demais clones se perdem tentando entender o que está acontecendo, já que isso fugia à programação original. Mesmo Liu/Dira tenta se fazer parecer mais com seus originais, mas percebe o quanto isso é inútil. Entender a si mesmo como algo diferente, até porque todos eles vivem em outro ambiente que não é o da Terra, construindo novas existências. É possível pensar até mesmo no fato de a colonização de Proxima B ser um fruto mais dos clones do que de seus originais.
Para mim, o romance poderia ter permanecido mais no estudo dos personagens. Nikelen faz uma ótima contextualização, mas às vezes nos perdemos em informações que não necessariamente são importantes para o enredo principal. A história de Teo, Dira e Liu é tão mais interessante do que detalhes de terraformação ou de acidentes ocorridos no planeta. Por outro lado, os demais personagens foram esquecidos muito rápido da metade para o final. Tem um momento na narrativa que não ouvimos falar dos demais colonos por mais de vinte páginas. E um dos conflitos mais interessantes no romance é essa análise íntima da interação entre eles. A monotonia, o tédio, a falta de criatividade. Eram temas bem legais a serem explorados, principalmente após a descoberta das sabotagens. Daria mais corpo à narrativa se pudéssemos desconfiar de todos, sem exceção. Ao destacar as contradições de comportamento, o que escondemos no nosso íntimo, o aspecto do suspense seria elevado à máxima potência. Sem mencionar que isso contribuiria para o debate de definições que vimos permear ao longo de toda a narrativa.
Também achei o final um pouco apressado. Existe a progressão de tensão até a revelação do que está acontecendo desde o começo. Nikelen opta por dois desses momentos: um mais ou menos na metade quando as intenções são meio clareadas e outra no final com a virada narrativa que revela o antagonista. E concordo que a revelação é bem Agatha Christie mesmo. Não era algo de todo inesperado porque o antagonista é sinalizado durante toda a narrativa. Por isso mencionei que seria melhor dar mais tempo de tela aos demais personagens para criar a dúvida. Talvez pelas constrições do tamanho (Silêncios Infinitos é uma novella, que se enquadra em uma quantidade limitada de palavras) a autora não pôde dar a devida atenção a esses problemas dentro do projeto. É uma história que se beneficiaria de mais espaço. O final semi-aberto foi aquele copo meio cheio, meio vazio para mim. Não me incomodou em si, mas não fiquei completamente satisfeito. Não houve tempo hábil para explorar as consequências, no epílogo, das decisões tomadas durante os momentos climáticos da história.
Contudo, Silêncios Infinitos é uma ótima história. Me prendeu do início ao fim. O suspense criado pela autora funciona e ela consegue passar bem o dilema vivido por Liu/Dira. O tema de um personagem não-binário precisando descobrir a si mesmo foi colocado de uma maneira bastante corajosa, pensando no fato de que esse é o motor da história. Os elementos de ficção científica são bem simples de entender e vão agradar tanto a quem gosta quanto a quem não curte tanto o gênero. Fica o meu convite para que vocês possam conhecer mais um trabalho competente da Nikelen Witter.
Ficha Técnica:
Nome: Silêncios Infinitos
Autora: Nikelen Witter
Integra a coleção Dragão Mecânico
Editora: Draco
Número de Páginas: 128
Ano de Publicação: 2023
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