Resenha: "Spoonbenders" de Daryl Gregory
- Paulo Vinicius
- há 2 minutos
- 8 min de leitura
A Fabulosa Família Telemachus ficou famosa pelos seus números de psiquismo até terem sido desmascarados e humilhados em rede nacional. Décadas mais tarde, os membros da família tentam juntar os cacos do que os faziam fabulosos um dia.

Sinopse:
Em meados dos anos 1960, em plena Guerra Fria, Teddy Telemachus, um sedutor trapaceiro nas cartas e nos truques de mágica, resolve participar de um estudo secreto do governo federal sobre habilidades paranormais. Lá ele conhece Maureen McKinnon, uma paranormal legítima, dotada de misteriosos poderes psíquicos, por quem se apaixona. Eles se casam, têm três filhos, todos com dotes excepcionais: Irene é um detector de mentiras humano, Frankie possui o dom da telecinese, e Buddy é capaz de prever – ou melhor, recordar – o futuro.
Em pouco tempo, os cinco começam a sair em turnês para exibir seus poderes, ficando conhecidos nacionalmente como A Fabulosa Família Telemachus. Até que um dia sua fama se quebra ao serem desmascarados num influente programa de TV exibido em todo o país. A partir daí, tem início a tragédia na vida de uma família que se esfrangalha em dívidas financeiras e instabilidade emocional.
Poderes psíquicos são um tema que hoje é menos explorado nos livros de ficção científica. Mesmo quando são, os autores preferem adotar uma postura meio vintage, brincando com características de outros períodos para contar sua história. É meio que isso o que Gregory faz nesse ótimo romance que explora uma família desajustada cujos problemas só fazem crescer ao longo da história. Nessa história temos Guerra Fria, problemas com mafiosos, trambiqueiros e até romance de bate-papo da internet. Queria aproveitar esse parágrafo inicial para estimular as pessoas a darem uma oportunidade a essa obra. Mesmo sendo uma ficção científica, ele tem bem pouco disso, podendo ser lido para quem curte ficção em geral. A história é tão bacana que é possível até imaginar uma série feita com ele e daria bons momentos. Não há nada de bizarro acontecendo e nem efeitos especiais impressionantes. Dá para passar por uma narrativa simples e divertida. A Rocco fez uma ótima escolha trazendo esse romance.
A Fabulosa Família Telemachus é formada por várias pessoas que possuem alguns dons especiais. O chefe da família, Teddy, é a exceção à regra: é um belo de um trambiqueiro, usando de suas habilidades com as mãos para enganar as pessoas. Maureen (a vó Mo) é a maior paranormal do mundo, com habilidades que só são superadas por sua imaginação; Frankie pode mover pequenos objetos com sua imaginação; Buddy tem incríveis habilidades divinatórias e Irene é um detector de mentiras humano. Mas, um dia, quando eles se apresentaram em um programa de TV de apelo nacional, eles foram desmascarados por Archibald. Isso levou à família à ruína, que só piorou após a morte de Maureen. Décadas mais tarde, eles estão enfiados em dívidas até o pescoço e o envolvimento de alguns deles com uma famosa família de mafiosos irá colocar a vida de todos em risco. Só que Buddy está se preparando para um grande evento que irá acontecer no futuro ao qual ele só consegue dizer que mudará tudo.
"Um recém-chegado ao negócio da trapaça talvez achasse que os cientistas fossem os mais difíceis de enganar, mas a verdade era o contrário. Cada letra após um nome acrescentava uma dose de confiança mal aplicada. PhDs acreditavam que o conhecimento em um campo - digamos, neurociência - os deixava genericamente mais inteligentes em todos os demais. Acreditar ser difícil de enganar era a qualidade compartilhada por todos os otários."
Gregory consegue nos entregar uma narrativa bem divertida. A história se desenrola entre os meses de junho e outubro quando acontece o evento previsto por Buddy. Ao longo desses meses acompanhamos Teddy, Matty, Irene, Buddy e Frankie enquanto eles vivem suas vidas. Ao mesmo tempo vamos conhecendo aos poucos a história da família Telemachus. Os relatos alternam entre presente e passado, sem uma linearidade certa nos flashbacks, apenas entregando o que o leitor precisa saber naquele momento. Lá no final conseguimos ter uma ideia do todo quando somos capazes de preencher as lacunas deixadas propositalmente pelo autor. A narrativa é contada a partir do Ponto de Vista de cada um dos cinco personagens, em um discurso em terceira pessoa livre. Cada capítulo acompanhamos a cena junto do personagem da vez. O ponto fraco nessa mecânica é que Gregory não dá uma diferenciação entre os POVs, sendo que todos parecem iguais. Somente o de Buddy tem um tom diferente dos outros. Na parte final, os capítulos englobam todos os POVs, fazendo uma alternância rápida entre eles, de forma a dar uma atmosfera de tensão. Para mim, Gregory escreveu esse livro pensando em vendê-lo como um roteiro de série. Ele tem todas as características de escrita de um.

A sensação de que a história se passa em outra época está presente no livro todo. Enquanto os flashbacks se passam na década de 60, o presente do livro é na década de 90. Inicialmente tive a impressão de que seria uma história envolvendo espionagem durante a Guerra Fria, mas essa temática acaba se perdendo bastante frente à trajetória da própria família. O autor passa de forma bem superficial nisso, citando os projetos exóticos surgidos durante a fase mais tensa do conflito entre EUA e URSS. A situação toda e o envolvimento de Teddy e Maureen com o agente Smalls tem uma importância para a família, mas não vejo como ela fatora no cômputo geral. Queria que Gregory tivesse dado mais atenção ao trabalho que os dois desenvolveram, principalmente no período anterior à morte de Maureen com o projeto Star Gate. Nem mesmo a paranoia do período foi explorada. Foi uma boa oportunidade perdida. Tem uns trechos de flashback que são bastante irrelevantes.
"Tudo era uma questão de momento moral. Quando a propriedade de inocentes se transformava nos ativos corruptos de criminosos - assim que entrava no cofre? Talvez fosse o milagre da transubstanciação, só que ao contrário. Uma anticomunhão."
A parte mais interessante mesmo são as histórias dos personagens. Teddy é um belo de um malandro e trambiqueiro. Daquele sujeito às antigas, que gosta de usar um chapéu fedora e sempre se veste bem em todas as oportunidades. É aquele sujeito que sempre está em uma mesa de poker apostando tudo e limpando a mesa. Vemos o mundo pela ótica de alguém que busca a melhor maneira de dar o seu próximo golpe. Ao mesmo tempo, é o chefe da família Telemachus. Tendo se apaixonado perdidamente por Maureen, ao perdê-la, é como se perdesse o contato com o mundo e a confiança em si mesmo. Na época da história, vemos como ele busca se reerguer, se alimentando de suas paixões e de uma bela mulher chamada Graciella. Mesmo diante de situações difíceis, Teddy consegue manter a calma e a tranquilidade. Mas, ele precisa lidar com uma família disfuncional e sua promessa feita a Maureen antes de sua morte de impedir o governo de transformar seus filhos em armas para o Tio Sam. Uma das características mais legais de Teddy é sua enorme confiança e ego o que o faz sair das situações mais complicadas que podemos imaginar.
O mesmo não pode ser dito de Frankie. Ele deseja ser o seu pai: ter a mesma aura de infalibilidade que o torna um ser completamente à parte dos demais. Mas, tudo o que consegue são trapalhadas e fracassos consecutivos. Frankie está sempre em busca de encontrar aquele esquema para ganhar muito dinheiro. A personalidade dele fica transparente quando o autor nos mostra o personagem tentando vender caixas de um produto maluco à base de goji berry em um esquema de pirâmide. E sua credibilidade é tão grande que ninguém aceita suas ofertas, salvo a irmã de um mafioso. Casado com Loretta, e com as filhas Cassie, Polly e Mary Alice, Frankie está quebrado. Mais do que tudo, deve milhares de dólares para a família Pusateri, mafiosos locais que trabalham como agiotas. Ele está afundado em dívidas e não sabe a quem recorrer até que vê nas habilidades recém-descobertas de Matty uma possível saída para todos os seus problemas. Só que a cada nova curva feita, Frankie demonstra cada vez a sua habilidade em colocar sua família em problemas cada vez mais sérios.
O problemático Buddy tem um dom e uma maldição: a habilidade de se mover entre presente e passado e saber exatamente o que acontece ao seu redor. Só que sua habilidade tem uma data-limite em setembro quando algo terrível vai acontecer. Ele tenta seguir à risca as definições de sua visão do passado: falar as mesmas coisas, fazer as mesmas coisas, preparar algumas construções para a época em que a tragédia acontecer. O grau de planejamento de Buddy é insano e no começo achamos que ele é apenas um personagem incapaz de se relacionar com as pessoas, talvez um autista em potencial. Lá pelo final da trama, quando as peças passam a se encaixar, vemos o grau de como Buddy mexeu e planejou as situações. Daquelas coisas de fazer a cabeça explodir. A única ação egoísta do personagem é o encontro com o seu verdadeiro amor, que ele faz todo o possível para fazer acontecer. Aquela que por um momento foi capaz de aquecer seu coração. Quando o encontro fatídico acontece, ficamos surpresos por como ele se desdobra. Gosto dos capítulos dele porque, de um ponto de vista narrativo, são os mais interessantes e são os que mais devem ter dado trabalho ao autor.
"Irene costumava dizer que a única coisa com a qual o pai se preocupava era o número. Mas isso não significava que ele não se importasse com a família. A família era o número e o número era a família."
O mais novo dos Telemachus nessa história é Matty. Ele não conheceu a fama da família, conhecendo-a apenas por relatos esporádicos e tímidos de alguns membros da família. Um adolescente em formação, tem uma paixão platônica por sua prima Mary Alice, a quem ele dirige todos os seus hormônios em desenvolvimento. Durante uma de suas espiadelas à Malice (como Mary Alice gosta de ser chamada), ele descobre ter poderes paranormais também. Ele é capaz de deixar o seu corpo como uma sombra e ir a lugares distantes. Mas, sua habilidade só pode ser acionada a partir de fortes emoções... com Malice. Sonhador, desejando saber mais sobre os Telemachus, ele acaba sendo envolvido nos esquemas de Frankie. Matty é um bom menino e tudo o que ele deseja é poder ajudar sua mãe, que não consegue arrumar um emprego e deixar sua família mais tranquila. As aventuras de Matty vão colocá-lo na mira de Destin Smalls, que quer voltar ao jogo de espionagem. Ameaçado de ter seu programa cortado pelo governo, Smalls descobre que Teddy pode estar acobertando que seus netos possuem também habilidades paranormais. E Matty pode ser a estrela do jogo, comparável à sua avó Maureen.

Deixei Irene por último porque os capítulos dela me fizeram lembrar da antiga série Desperate Housewives. Mulheres que se dedicaram à sua família e deixaram um pouco de lado a si mesmas, mas acabam sendo arrastadas para um mundo estranho que revela estranhos prazeres a elas. Irene sempre foi a mais responsável de sua família, e sua habilidade como detector de mentiras a faz ter enormes problemas de confiança. Todos mentem em algum momento e isso a magoa. Ela não consegue ter algum envolvimento amoroso. Um dia, um pacote com um computador com conexão para a internet chega em sua casa. Ela logo fica viciada em bate-papo online porque essa era a única forma de ela não poder saber se alguém estava ou não mentindo para ela. Seu poder só funciona em quem ela está vendo. Nessas aventuras por um novo caminho, ela conhece Joshua Lee, um sino-americano que mora em Phoenix e com o qual ela desenvolve um tórrido romance. Indo contra seus instintos, ela passa a se encontrar com ele. Mas, será que ela vai conseguir superar seus problemas de confiança?
"Fazer mágica de verdade. Essas coisas deixam as pessoas mais infelizes do que se não tivessem mágica nenhuma, porque isso não faz nenhum bem a elas. Mas se você sabe fazer um truque de mágica, você é pago. Você quer pago?"
O livro é bem divertido e foi uma ótima leitura para a passagem do ano de 2024 para 2025. Me deu aquele entretenimento descompromissado ao mesmo tempo em que passei a curtir essa família tão disfuncional. O que mais vai surpreender a todos são os momentos finais porque vocês não estarão preparados. E mesmo algumas revelações que acontecem depois. Recomendo bastante esse livro que acabou não recebendo o devido carinho e atenção da editora e de muitos leitores. Não foi à toa que ele ganhou tantas premiações no ano em que foi publicado nos EUA. Podem ir sem medo.


Ficha Técnica:
Nome: Spoonbenders - A Fabulosa Família Telemachus
Autor: Daryl Gregory
Editora: Fábrica 231
Tradutor: Edmundo Barreiros
Número de Páginas: 476
Ano de Publicação: 2019
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