Vamos iniciar uma longa e árdua jornada por 108 contos de ficção científica de vários lugares do mundo. Eles foram escolhidos por Jeff Vandermeer e sua esposa Ann Vandermeer. Uma jornada que levará alguns anos para ser completa, mas vamos postar todos os que formos resenhando nas postagens.
O The Big Book of Science Fiction é um livro impressionante que coloca em suas páginas uma quantidade absurda de contos escritos ao longo do século XX e início do XXI. Jeff e Ann Vandermeer conseguiram incluir uma imensa variedade de histórias de todas as partes do mundo. Sei que este trabalho que inicio hoje, de resenhar todos os contos desta coletânea vai levar alguns anos para ficar pronto e que não vai agradar a todos os leitores. Mesmo assim, eu considero um ganho enorme para mim como leitor e para todos os demais que desejarem me acompanhar nessa jornada não, nessa epopeia do gênero.
Contos presentes nesta primeira parte:
1 - "The Triumph of Mechanics" de Karl Hans Strobl (1907)
2 - "The New Overworld" de Paul Scheerbart (1911)
3 - "Elements of Pataphysics" de Alfred Jarry ((1911)
4 - "Mechanopolis" de Miguel de Unamuno (1913)
5 - "The Fate of the Poseidonia" de Claire Winger Harris (1927)
6 - "The Star Stealers" de Edmond Hamilton (1929)
Vamos às resenhas:
1 - "The Triumph of Mechanics"
Autor: Karl Hans Strobl Avaliação:
Publicado originalmente em 1907
Nos seus primórdios a ficção científica era um gênero muito mais voltado para compor peças de pensamento. Alertas sobre a destruição da natureza, a relação do homem com o planeta, um regime político cruel, a desesperança das pessoas. Muito tempo depois é que a ficção científica ganha outras cores se voltando para o entretenimento. Não é de estranhar que dentro de um momento tenso da história do Ocidente no século XX, Karl Hans Strobl escreve um conto sobre o perigo das máquinas em relação aos homens.
The Triumph of Mechanics tem vários elementos bem humorados e até meio pastelão, mas não deixa de ser assustador se pararmos para analisá-lo mais a fundo. A ideia principal era demonstrar a revolta de Hopkins contra a recusa do prefeito de deixá-lo montar sua fábrica de brinquedos que rivalizaria com a fábrica de Vonderteil. Sendo passado para lá e para cá pela burocracia do lugar, Hopkins acaba decidindo fazer justiça com as próprias mãos. O medo de Vonderteil era que Hopkins tinha desenvolvido máquinas com uma estrutura feita de vidro e isso colocaria os seus brinquedos mecanizados no chinelo em pouco tempo. Portanto, ele usa a sua influência junto ao prefeito para impedir a construção da nova fábrica. É então que Hopkins constrói uma série de coelhos robôs que vão aterrorizar a cidade. Parece algo besta, mas em um momento do conto, Strobl faz a gente pensar que as máquinas estariam se reproduzindo tão rapidamente que em pouco tempo substituiriam os homens. Novamente, existe uma pegada bem humorada, mas não deixa de ser uma crítica frente à Segunda Revolução Industrial ocorrida décadas antes e a percepção frente aos donos de fábricas de desejarem substituir seus funcionários por máquinas que não necessitariam de remuneração. Na época existia esse medo de boa parte das organizações sindicais, muitas delas ainda embrionárias.
O conto é divertido e tem seus momentos, mas mesmo assim eu considero bem fraco no quesito enredo. Já vi H.G. Wells criar narrativas bem mais interessantes e ele era contemporâneo de Strobl. O desenvolvimento é bem simples e direto e o final é uma excelente punch line. Não há muito o que comentar além disso sem estragar as surpresas apresentadas pelo autor.
2 - "The New Overworld"
Autor: Paul Scheerbart Avaliação:
Publicado originalmente em 1911
Este é um conto que utiliza uma estrutura semelhante ao dos contos de fada. Eu não iria apresentar uma resenha dele porque não há muito o que ser dito a respeito já que ele é uma história curta e direta. Mas, vale a pena compreender como o autor constrói as situações apresentadas na narrativa. Alguns contos de fada foram criados a partir de uma narrativa desenvolvida a partir de três situações-problema. Na primeira é apresentada uma situação que demonstra do que se trata o obstáculo; no segundo momento é apresentado um elemento que complica a ultrapassagem do obstáculo; e no terceiro o obstáculo é superado. Esse tipo de construção constitui o que chamamos de histórias cautelares. É um tipo de estrutura que eu não vejo mais nos dias de hoje, mas que dependendo da maneira como o autor a utiliza pode render um bom conto. No caso desta história escrita por Scheerbart produziu este efeito de conto de fada.
Infelizmente, o conto é de difícil apreensão. Mesmo sendo curto, a história é um pouco confusa e o encadeamento de palavras não é bem realizado. Quando o leitor termina de passar o texto ele soa estranho na mente. Porque me pareceu até um conto vazio de significado, apenas algo para te colocar em uma situação diferente em outro planeta e mostrar estranhas criaturas com o formato de flores. Mas, depois de ler uma segunda vez a narrativa ficou mais clara para mim. Na verdade se trata de um conflito entre pessoas dinâmicas e aquelas que preferem o status quo. Parte da população de Vênus queria aumentar a área pela qual as pessoas poderiam se movimentar. Mas, os tartarugas, ou seja, os mais conformistas, sempre colocavam algum tipo de obstáculo. Na primeira solução, os dinâmicos acabaram tendo que ceder espaço aos conformistas. Quando foi colocada uma solução que agradaria aos dois grupos, os conformistas ficaram incomodados por conta de seu conforto ter sido afetado em prol do bem-estar dos dinâmicos. E é então que é oferecida uma solução final, que eu não vou comentar. Mas, vale a pena como uma história cautelar de como o desenvolvimento pode ser atrapalhado por aqueles que desejam apenas a manutenção de um contexto. Assim como no primeiro conto, temos uma história que visa apresentar um ponto de vista defendido pelo autor.
Enfim, uma história rápida que pode ser lida em poucos minutos e revelar uma profundidade maior do que aparenta. Só achei que as ideias foram apresentadas de uma maneira um tanto confusa, mas em uma leitura mais atenta ou uma releitura estes elementos podem ficar mais claros.
3 - "Elements of Pataphysics"
Autor: Alfred Jarry Avaliação:
Publicado originalmente em 1911
Uma tradição entre as antigas histórias de ficção científica era a dos contes philisophiques. Eram histórias que visavam apresentar algum desenvolvimento tecnológico ou reforçar alguma linha de pensamento filosófico de vanguarda. Nessa tradição, nós já comentamos aqui sobre Paul Scheerhart, Charlotte Perkins Gilman e uma autora que ainda falaremos aqui que é a Roquia Sakhawat Hussain (e seu conto O Sonho de Sultana). Nestes casos o cenário de ficção científica serve como uma alegoria para a apresentação de uma ideia. Entre os estudiosos dos contes philosophiques existem alguns que defendem até mesmo que Mary Shelley e Jules Verne poderiam ser enquadrados neste estilo de histórias. Discordo do primeiro caso e fico em cima do muro em relação a Jules Verne.
Esta história eu não recomendo aos amigos leitores. Ela é bem estranha ao apresentar uma série de excertos sobre ideias bem exóticas como o da etherealidade, o do posicionamento cósmico e a própria patafísica, que poderíamos entender como a ciência das soluções imaginárias. Então o que temos neste conto são fórmulas matemáticas tentando provar que Deus é um ponto tangencial entre 0 e o infinito ou uma estranha troca de "mensagens telepáticas" entre o autor e Lord Kelvin. Para aqueles que, como eu, curtem histórias clássicas e desejam sair um pouco daquele foco de ler H.G. Wells e Jules Verne, este conto pode ser bem curioso e levantar sobrancelhas sobre o que os autores conseguiam imaginar naquele momento. E como a ficção científica poderia ser usada para corroborar conceitos filosóficos.
Então, a menos que você seja um amante da ficção científica clássica, saia fora e vá ler alguma coisa menos estranha.
4 - "Mechanopolis"
Autor: Miguel de Unamuno Avaliação:
Publicado originalmente em 1913
Para aqueles que não conhecem o autor, Miguel de Unamuno é um grande escritor espanhol do início do século que, apesar da pequena produção, escreveu obras extremamente reflexivas. Vamos ver a influência dele permeando a escrita de alguns ícones como Jorge Luis Borges. O uso da ficção científica ou do realismo mágico para repensar as relações sociais.
Mechanopolis é um exemplo de conto curto: no meu Kindle foram mais ou menos cinco páginas, então acredito que ele deva integrar a classificação de microconto. Alguns não acreditam ser possível desenvolver bem uma história em um espaço tão pequeno. Esta história é um exemplo claro de que isso não é verdade. Aqui o autor consegue construir muito bem uma história com início, meio e fim. A ideia geral é apresentar o medo do ser humano diante das máquinas que poderiam tomar o nosso lugar. Só um parênteses aqui, mas você, leitor, não vai ver um robô aqui. A ideia do robô como conhecemos hoje, segundo os estudiosos das raízes do gênero, vai aparecer apenas uma década mais tarde com Karel Capek e seu romance A Revolta dos Robôs. O que temos aqui é apenas o elemento da automação de todas as tarefas. A mecanização serve como um medo suficiente para que o homem se sinta ameaçado pelo fantasma da eficiência que só um autômato poderia trazer. Não vamos nos esquecer de que o mundo acabara de passar pela Segunda Revolução Industrial algumas décadas antes e a ideia da substituição do homem pelas máquinas ainda ganhava formas e tinha muitos mitos em cima disso.
Fica um parênteses aqui do uso de um trope muito interessante na história. O autor começa contando que o relato que se seguia lhe havia sido confidenciado por um amigo. Esse é um trope típico dessas histórias mais antigas que autores como Edgar Rice Burroughs e até mesmo Machado de Assis vão empregar em suas histórias de forma a dar um ar mais "realista" ao relato.
Esse é um conto curtinho (você devora em uma sentada... talvez em uns quinze ou vinte minutinhos) e que vale a pena até para conhecer a escrita do autor.
5 - "The Fate of the Poseidonia"
Autora: Claire Winger Harris Avaliação:
Publicado originalmente em 1927
Clare Winger Harris é a primeira mulher a publicar uma história pulp na Weird Tales. As revistas pulp foram os lugares onde os primórdios da ficção científica surgiram. Mas, os pulps podem parecer histórias meio confusas ou com narrativas ingênuas para os leitores dos dias de hoje. Isso porque suas tramas eram feitas para um público amplo e não podiam ser complexas demais. Os pulps eram vendidos em bancas de jornal, possuindo uma circulação incrível. Na época da Grande Depressão norte-americana, os pulps se desenvolveram muito ao tirar o americano de sua vida terrível.
E é com espanto que eu me deparo com a narrativa da autora. Achei o plot básico bem simples: uma pessoa que é próxima ao protagonista parece ser um espião enviado pelos marcianos para roubar água da Terra através de maquinários espaciais que se escondem em nuvens. Sim, tem mais na história do que isso, mas esse é o plot básico. Uma das coisas que eu mais curto em pulps é a ingenuidade dos autores em relação a determinadas situações: transportar água e navios através do espaço para colocar água de volta em Marte. É divertido, mas não se deixem levar pela simplicidade extrema da coisa, porque serão esses autores que servirão de influência a ícones da Era de Ouro da ficção científica. E, fico extremamente feliz de ver uma mulher sendo publicada na Weird Tales, um lugar que publicou histórias do H.P. Lovecraft, por exemplo.
O aspecto científico da história é bem bobo mesmo. Não vamos nos esquecer que boa parte das pesquisas feitas sobre a superfície de Marte são muito posteriores à publicação deste conto. Senti uma certa similaridade entre a visão da autora e a de Edgar Rice Burroughs, o autor por trás da criação do famoso personagem John Carter. Em determinados momentos a história adota um tom de espionagem apesar de o protagonista ser um cientista muito atrapalhado. Também fiquei com a impressão de que a autora deixa transparecer que o antagonista queria que o personagem agisse para impedir seus planos. Mas, foi só impressão mesmo.
Não gostei da maneira como o interesse amoroso do personagem é usado para dar um plot twist no final. Senti que a mulher é usada mais como uma ferramenta do que como qualquer outra coisa. Isso porque a relação entre o cientista e a mulher não é bem explorada pela autora ao longo da trama. Lógico que, sendo a Clare publicada na Weird Tales, eu não esperava ver um manifesto feminista. Mas, esperava que ela apresentasse uma personagem feminina de uma maneira mais digna. Também achei um final muito insatisfatório. No fim das contas, este é um conto pulp divertido que vale a pena ser lido para que o leitor consiga entender a maneira como os autores de um gênero de grande circulação no período entendiam como uma narrativa deveria ser construída.
6 - "The Star Stealers"
Autor: Edmond Hamilton Avaliação:
Publicado originalmente em 1929
Se você é fã de space opera, e não conhece Edmond Hamilton, pare o que você estiver fazendo e adquira já qualquer coletânea de histórias dele. Estamos diante de uma lenda no gênero, talvez um dos fundadores do gênero da space opera. O autor pertence à primeira geração de histórias publicadas na Amazing Stories, uma revista que revelou posteriormente Ray Bradbury e Isaac Asimov. Infelizmente, muitos conhecem o autor porque ele foi casado com Leigh Brackett, a dama da space opera. Apesar dos feitos de sua esposa, Edmond escreveu histórias incríveis por si só. E aqui em The Star Stealers temos aquele tipo de história de viagem interestelar de raiz.
Posso achar a trama boba também até por causa de suas bases no gênero pulp, mas não se deixem enganar. O autor conseguiu esconder várias altas ideias no meio de uma narrativa simples. Em primeiro lugar, não era comum escrever histórias que se passam em várias galáxias. Normalmente os autores preferiam permanecer no sistema solar, com histórias que se passavam em Marte ou em Vênus, ou até na Lua. Em segundo lugar, e quem é fã de Lovecraft logo vai se animar, esta é uma história de horror cósmico. Isso significa que Hamilton se inspirou em Lovecraft? Errado. É o contrário. Lovecraft publicou na Weird Tales muitos anos mais tarde. E pelo que eu li em The Star Stealers dá para perceber tranquilamente que o autor de terror pegou algumas ideias de Hamilton. Principalmente no que diz respeito a criar raças alienígenas estranhas. Tem que ser muito criativo para pensar em uma raça de cones negros com tentáculos.
O aspecto da space opera é bem nítido com o protagonista sendo o capitão de uma nave que realiza missões em galáxias distantes. Temos aqui uma Federação e uma narrativa com cientistas que procuram entender fenômenos desconhecidos. Te lembrou Star Trek? Pois é, a mim também. O confronto com os habitantes do sol negro também é naquele estilo de space opera com tudo sendo uma grande exploração e a violência não sendo o principal da história. As batalhas são resolvidas de uma maneira limpa. Os elementos de terror estão presentes, mas é mais no sentido de revelações: uma raça realmente muito estranha, o objetivo real deles.
A escrita é muito simples e direta, apesar de ser um tanto descritiva e cansativa em alguns trechos. Isso porque o autor se preocupa bastante em apresentar a física de seu mundo. É possível perceber uma veia de cientista ou de pesquisador no autor já que ele comenta de certos conceitos como o do ether e o do deslocamento intergalático empregando ideias comuns naquele período. Entretanto, nada que os fãs do gênero não vão curtir. Aqui não temos uma história revolucionário ou ideias que vão mudar sua vida. Apenas uma maneira de contar histórias que vai servir de inspiração a muitos autores no futuro. É uma leitura "obrigatória" a todos os fãs de space opera como eu.
Ficha Técnica:
Nome: The Big Book of Science Fiction
Autores: Jeff Vandermeer e Ann Vandermeer
Editora: Vintage
Gênero: Ficção Científica
Número de Páginas: 1216
Ano de Publicação: 2016
Outras Publicações:
Parte 9
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