Um pequeno conto escrito por China Miéville fazendo uma dura crítica à propriedade privada, à deturpação dos movimentos sociais entre outras coisinhas. Tudo com a ironia e a estranheza que só o autor pode trazer.
Por esses dias eu estava procurando contos de natal para resenhar na semana das festividades. Separei alguns e quando apareceu este conto do China Miéville na minha lista da Amazon, baixei logo. E o conto tem tudo da estranhice típica do autor e mais um pouco. Além das duras críticas sociais que estão sempre presentes na sua narrativa.
No mundo criado por Miéville na história, estamos em um futuro onde aconteceram os Atos de Natal. A maior parte dos objetos, celebrações e menções a coisas ligadas ao natal tiveram as suas propriedades intelectuais compradas. Ninguém mais pode dar presentes sob uma árvore de natal, montar uma árvore de natal, se vestir de papai noel ou qualquer outra coisa relacionada sem pagar um imposto caríssimo aos donos dos direitos. O protagonista está triste porque ele gostaria de mostrar à sua filha a alegria que é celebrar a data. Mas, ele está com sorte: ele ganhou um sorteio e vai ter direito a comemorar o Natal como se deve dentro da empresa que detém seus direitos. No meio do caminho até a festa eles se deparam com uma manifestação feita por natalistas rebeldes. Daí em diante é uma loucura atrás da outra.
A tradução do conto está muito boa mesmo, não apresentando qualquer dificuldade para o leitor neste sentido. Talvez o leitor comum sinta dificuldade mais nas várias associações e pequenas ironias que Miéville faz em suas histórias. Recomendo até que o leitor releia após terminar para pegar o maior número possível de referências e simbologias que ele emprega no conto. O melhor adjetivo que se pode usar para esse conto é: mordaz. Sabe quando um autor tira aquele sorrisinho de lado porque você entendeu a ironia? É isso. Para aqueles que estão preocupados com um conto "lacrador" ou "proselitista", esqueçam isso. É óbvio que o Miéville é um crítico da direita e do conservadorismo, mas ele faz isso não jogando verdades na cara do leitor, mas apresentando caminhos e fazendo-o pensar por si só. Ele faz até críticas aos próprios movimentos sociais.
O tema mais na cara é o quanto muitas das coisas que gostamos estão sendo cerceadas por empresas e corporações. Impossível não pensar imediatamente na nossa Amazônia e como muitos de nossos recursos naturais estão sendo patenteados fora do Brasil. A piada com as festas de natal está em que existe uma vontade de forças conservadoras em controlar coisas espontâneas. A espontaneidade não pode caber dentro de um rótulo. Vou usar uma boa metáfora que o brasileiro é capaz de entender. O carnaval no Rio de Janeiro possui duas vertentes: o desfile de escolas de samba que acontece na Marquês de Sapucaí e os blocos de rua que estão espalhados por toda a cidade. O desfile de escolas de samba se tornou algo muito artificial com patrocínios, regras e todo o tipo de paramentos que fazem aquilo ser um produto propriamente dito. Claro que existe toda a alegria envolvendo a música e o espírito festivo, mas quem vai a um bloco de rua vê toda a alegria e a espontaneidade por trás da festa. Não há regras ali, apenas pessoas descarregando toda a energia negativa adquirida ao longo do ano durante cinco dias de festa. O que Miéville nos apresenta ao longo destas quase quarenta páginas é um exemplo típico de sociedade de controle, quando o povo perde o poder de controlar a si mesmo e o governo toma esta capacidade com força e intimidação.
Por outro lado, vemos também a enorme diversidade de movimentos sociais presentes na narrativa. É curioso ver que os movimentos não conversam uns com os outros. Isso demonstra o quanto houve uma pulverização da capacidade de reivindicar seus direitos. Isto em detrimento de um bem maior que é, no caso, a restauração da festividade natalina. Cada um dos grupos presentes ali tem sua própria agenda e obedece a seus interesses. Por isso que não havia um front único de enfrentamento contra os poderes dirigentes. Miéville faz até uma brincadeira com um grupo que deturpou a imagem de Marx em prol de seus próprios interesses. É a demonstração máxima de o quanto os movimentos sociais precisam repensar e refletir sobre o modelo de enfrentamento que está sendo empregado. Na narrativa, este esfacelamento da capacidade de lutar por seus direitos só favoreceu àqueles no poder.
Um Conto de Natal é uma leitura fascinante, com aquele brilhantismo típico da escrita do autor. Só achei que o conto teve um final um pouco apressado, e o autor poderia ter dado mais umas 4 ou 5 páginas para fechar as coisas de uma forma mais satisfatória. Mas, aquele trocadilho final foi arrebatador. É um conto divertido, inteligente e reflexivo. Só tenho a recomendar.
Ficha Técnica:
Nome: Um Conto de Natal Autor: China Miéville Editora: Boitempo Tradutor: Fábio Fernandes Ilustrações: Odyr Gênero: Ficção Especulativa Número de Páginas: 38 Data de Publicação: 2018
Avaliação:
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