Uma coletânea de histórias de ficção científica de altíssimo nível contando com a participação de novas vozes nacionais do gênero como Cláudia Fusco, Anna Martino, Lu Ain-Zaila, Waldson Souza, Roberto Fideli e Lady Sybylla.
Contos desta coletânea:
1 - "Antônio do Outro Continente" de Anna Fagundes Martino
2 - "Corra, Alicia, corra" de Lady Sybylla
3 - "Eletricidade em suas veias" de Waldson Souza
4 - "Eu, Algoritmo" de Lu Ain-Zaila
5 - "O Pingente" de Cláudia Fusco
6 - "Sia está esperando" de Roberto Fideli
Resenhas:
1 - "Antônio do Outro Continente"
Autora: Anna Fagundes Martino Avaliação:
As nações do mundo singraram o espaço em busca de colônias que possam sustentar a vida na Terra. Em satélites artificiais, pessoas se dedicam a cultivar produtos necessários à crescente população terrestre. Mas, a vida dos que vivem em Outro Continente é dura e difícil, e nem sempre recompensada. Antônio é uma dessas pessoas, habitando no satélite artificial Bertha Lutz, vinculado ao Brasil. No meio de um dia de descanso em uma farra que dura a noite toda, ele conhece Izar, uma jovem oriunda do País Basco que agora lutava pela sua soberania no espaço. Depois de uma noite regada a dança e bebida, eles acabam se envolvendo. Ao longo de sua relação, as diferenças culturais e as reclamações começam a surgir. Apesar de Antônio saber que tudo iria acabar um dia, ele alimenta a esperança do verdadeiro amor. O mesmo podemos dizer de Izar que conhece cada vez mais o seu parceiro e não sabe o que quer para si. Poderá esta relação frutificar, mesmo diante de tantas diferenças?
Uma bela maneira de começar esta coletânea com uma história da Anna Fagundes Martino. E aqui ela nos entrega uma narrativa bastante sensível, quase um Romeu e Julieta, mas com mundos separados e repletos de suas diferenças. Apesar do título, a narrativa é contada pelo ponto de vista da Izar, que procura entender mais sobre si e seu papel no mundo. A autora não tem pressa em nos apresentar o mundo e seus personagens. Uma escrita calma e paciente que nos leva juntos por um passeio a este lugar e todas as suas discussões. É a mesma técnica que a autora usou ao escrever A Casa de Vidro. Com largas porções descritivas, a narrativa não perde fôlego do início ao fim porque nos envolvemos nos problemas dos personagens. A trama se relaciona conosco ao vermos filhos sendo explorados pelos pais que usufruem daquilo que eles enviam sem pudor. Essa é uma das associações possíveis entre diversas outras.
Antônio é um rapaz calmo e paciente, que busca a tranquilidade acima de tudo. É aquele tipo de pessoa tranquila e sossegada que serve para apaziguar discussões. Mas, seu coração está carente e triste por sua família. Ele deixou uma irmã na Terra que leva parte de seus ganhos todos os meses. Antônio sabe que algo está errado, mas faz isso pelo pai que se sacrificou para estar no espaço. A chegada de Izar em sua vida bagunçou sua dinâmica. Ele não quer saber da Terra. Para ele, são todos minhocas ou parasitas que merecem permanecer em um lugar decadente e dependente do seu trabalho. Por outro lado, Izar é impulsiva e aventureira. Ela está em busca de novas sensações, novas emoções. Não quer ficar presa ao nome de seu pai, um homem que acabou por ter uma doença terrível que bagunçou a sua mente. Agora vive em um mundo à parte. Izar não entende o amor dos selênicos (como Antônio é chamado) tem por um espaço tão apertado e claustrofóbico. Praticamente não possui nada, nem coleciona nada. Qual é a graça em estar em um lugar tão limitante como esse? Ou será que é realmente limitante mesmo? Essa é uma daquelas narrativas que vai nos fazer sair em busca de suas associações conosco e quando nos dermos conta disso, será aquele momento de claridade que precede o soco no estômago.
2 - "Corra, Alicia, corra"
Autora: Lady Sybylla Avaliação:
Desesperada e sem encontrar sua amada Bianca, Alicia tenta se esconder nos dutos de ventilação de seus perseguidores. Sua vida toda ela esteve trancada em uma cela, sendo Bianca o único alívio de uma vida tão difícil. O toque de sua mão, o hálito de sua boca com os lábios próximos dos seus. Mas, algo estava errado. Por que ela ficou trancada e abandonada em sua cela por tantas semanas, sem um único contato daquela que ela ama? Tudo o que ela queria era uma palavra, um carinho. Agora, Alicia foge desesperada e seus perseguidores parecem estar se aproximando. Onde está Bianca?
Sybylla nos guia pela confusão de sua protagonista ao longo das páginas. Uma narrativa em terceira pessoa, mas muito próxima da personagem, ajuda a dar um ar desesperador a toda a sequência. Toda a história se passa em uma cena que é a da fuga. Aos poucos a autora vai nos dando pistas do enorme quebra-cabeças que cerca essa história. O leitor vai juntando as peças e se deparando com uma verdade assustadora. Gostei de como Sybylla faz tudo isso em poucas páginas, com uma narrativa simples e direta. Os trechos de flashback se encaixam de acordo com o que está acontecendo no presente com Alicia, servindo como um tipo de recordatório, auxiliando no processo de contextualização. Os trechos finais envolvem um belo plot twist do qual nem posso falar muito correndo o risco de estragar a surpresa preparada pela autora. Bela narrativa!
3 - "Eletricidade em suas veias"
Autor: Waldson Souza Avaliação:
Há muitos séculos atrás uma raça de humanos imortais vivia em uma terra acima dos homens. Uma de suas habitantes era uma cientista que criou um ser autômato capaz de ter emoções humanas, mas cuja bateria durava poucos anos. Seu trabalho não foi aceito por seus pares e ela foi retirada de seu projeto de pesquisa. Ela havia construído um protótipo chamado Berko e teria que destruí-lo para não chamar a atenção para si. Mas, ela não se conforma com essa decisão e acaba enviando Berko para o mundo terrestre onde ele viverá entre os homens. Ele viverá inúmeras vidas e sua criadora irá registrar os resultados de sua pesquisa. Mas, a criadora sabe ele passará por inúmeras dificuldades já que sua pele é negra assim como a daqueles que o criaram. A narrativa verá múltiplas vidas desse ser fascinante enquanto a cientista observa a tudo do alto.
Essa é uma bela história que lida com muitas questões diferentes. Talvez um dos temas mais fortes seja a da perseguição à população negra. Waldson Souza não tem pudores em nos mostrar o quanto o preconceito adotou múltiplas formas ao longo dos séculos seja na escravidão de outrora ou na falta de oportunidades do presente. Por ser uma criatura que vive múltiplas vidas, Berko vai possuir inúmeras características e sentimentos e em alguns momentos ele será um homossexual. Passará pelas dificuldades de períodos em que fazer parte da população LGBT era um risco à própria vida. Se trata de uma narrativa geracional que serve para apresentar as ideias propostas pelo autor acerca da desigualdade social e do preconceito.
Outro tema que permeia toda a história é o que nos torna humanos. É a nossa capacidade de sentir, de nos relacionar? É a de propor ideias lógicas? O experimento da cientista consiste em não dizer a Berko que ele é um autômato e deixá-lo viver sua própria vida. Trabalhar, conversar com pessoas, amar. Viver a vida com suas qualidades e defeitos, com seus problemas e dilemas. De vez em quando a criadora atuava para evitar a descoberta da existência quase eterna de Berko, ou ajustar alguma situação mais complexa. Alguns diálogos que são trabalhados ao longo do conto são bastante reflexivos principalmente no que diz respeito à própria pergunta sobre existir. O autor já chegou a trabalhar com essa noção de transumanismo no passado e o vemos abordando o mesmo assunto sob diferentes ângulos. A narrativa é fascinante e em alguns momentos nos deparamos com situações-chave como a descoberta do amor, a necessidade de se adaptar às mais diferentes circunstâncias, o encontro acidental com alguém do passado. O autor mantém também um ar de mistério sobre quem são estes seres que vivem acima do solo, mas deixa algumas pistas como o fato de eles também terem sido criados, de terem tido algum tipo de conflito no passado e sua opção por se isolar e não ter mais contato com os humanos. Uma bela história que vai te fazer pensar sobre uma infinidade de assuntos.
4 - "Eu, Algoritmo"
Autora: Lu Ain-Zaila Avaliação:
Um certo dia, em um contexto muito semelhante ao nosso, uma espécie de AI chamada DOGI emprega os algoritmos deixados por nós pela internet para chantagear uma cidade. Todos devem se submeter à vontade de DOGI sem pestanejar. Mas, Ajia é uma das poucas que não se deixa intimidar. É então que as pessoas que foram chantageadas passam a perseguir Ajia e capturá-la para entregar nas garras de uma AI cujos objetivos ainda não são claros. É aí que se inicia uma intensa fuga onde toda uma cidade está contra nossa protagonista. Sendo uma ciberativista, ela não pretende se entregar tão fácil.
Esse é um conto voltado para trabalhar uma argumentação. A do cuidado com os vestígios, senhas e informações que deixamos na internet. Todos os dias temos nossos dados compartilhados entre inúmeros sites e provedores por toda a parte do mundo. Nossos gostos, nossos hábitos e até nossos rostos estão espalhadas por toda a parte. É um assunto que suscita muitas discussões e nos vemos em um mundo que cada vez exige que nós mais e mais nos envolvamos com o universo online. A narrativa serve a esse propósito e o leitor pode achar que a história nem é o mais importante aqui. A situação vivida pela personagem serve como um meio para a discussão desse assunto. Por mais que eu curta demais a temática trazida pela autora, é perceptível que a narrativa ficou em segundo plano. E isso não age em detrimento da história, que tem suas surpresas e curvas. O final da narrativa também surpreende e não sei se o objetivo da autora foi deixar algum tipo de gancho para histórias futuras.
Há alguns truques de escrita que ela usa durante o conto como o emprego da narrativa em primeira pessoa para gerar um espelhamento da parte do leitor. Para que imaginemos que isso poderia estar acontecendo conosco. Ela também emprega algumas subseções onde a personagem tece comentários sobre o mundo contemporâneo e a forma como nos relacionamos com a internet e o universo online. Essas subseções ajudam a aprofundar o tema proposto ao longo da narrativa.
5 - "O Pingente"
Autora: Cláudia Fusco Avaliação:
Uma IA responsável por cuidar da pequena Sophia a acompanha por boa parte de sua vida. Como uma babá, como uma companheira, como uma amiga. Enxergamos a vida da criança e da IA se entrelaçando em uma rede de emoções que nos leva a uma encantadora jornada pelas alegrias e dissabores dessa relação. Ao mesmo tempo em que ela ensina Sophia conceitos básicos para poder levar sua vida, aprende outras lições, sejam estas duras ou gentis. No final do caminho, tanto o programa como o indivíduo estarão transformados para todo o sempre.
Essa é uma narrativa que esbanja doçura e sensibilidade ao mesmo tempo em que não se esquiva de temas polêmicos. Fusco nos entrega um bom slice of life em que ela nos coloca no papel de uma Inteligência Artificial cuja tarefa é ser o duplo de uma criança que vai crescendo e se desenvolvendo. A escrita é muito boa e compassada e, embora seja um conto, ou seja, uma narrativa curta, a sensação é de toda uma vivência ao lado dos personagens. Gosto de como a escrita da autora é simples de ser compreendida, sem firulas ou mecanismos complexos. A narrativa é também bem dividida entre o nascimento, a infância e a adolescência até chegar ao início da vida adulta. Em todas as três fases existem temas importantes sendo debatidos e o leitor não deixa de ter interesse na história. Queremos acompanhar até o final.
Dois temas importantes debatidos pela autora são o amor e a família. Na primeira parte da história vemos como a IA acaba substituindo de certa forma o cuidado das mães de Sophia. Ambas não tem tempo de estar com ela por conta de suas vidas atribuladas. Desde cedo, a IA assume esse papel e a criança se afeiçoa bastante a ela. Temos transformações, é claro, como a separação das mães que acontece logo no começo da narrativa e a autora precisa mostrar o impacto disso na vida de uma criatura tão pequena e que nada conhece do mundo. Os momentos na escola, as dúvidas na adolescência, o processo de crescimento e transformação. Sem entregar muito sobre a narrativa, basta entendermos que o final se conecta a uma importante decisão de nossas vidas, quando passamos a trilhas nosso próprio caminho em nossas vidas. Uma importante necessidade de sairmos de nossas moradias para nos aventurarmos em um mundo maior. A autora está de parabéns por essa linda história.
6 - "Sia está esperando"
Autor: Roberto Fideli Avaliação:
Após uma trágica situação em Timbuktu, a tripulação da Anatsuru acaba fazendo um pouso de emergência um estranho e gelado planeta. Sia, a inteligência artificial responsável por auxiliar a capitã com as funções da nave contabiliza que a maior parte da tripulação morreu, deixando apenas nove sobreviventes. Em uma situação de emergência, e sem contato com o Império, a capitã Jin vai precisar juntar esforços para consertar a nave e tentar sair desse planeta desolado o mais rápido possível. Só que a descoberta de estranhas ruínas pertencentes a uma antiga civilização alienígena pode colocar tudo em jogo.
Essa é uma ótima narrativa que mostra toda a habilidade do autor em criar narrativas tensas e que engajam o leitor. Apesar de o tamanho da narrativa ser o seu calcanhar de Aquiles, essa história prova mais do que nunca que Fideli precisa escrever uma narrativa mais longa. Sabe quando o leitor percebe essa necessidade? Já várias histórias curtas dele e sinto que ele está preparado para voos maiores. A narrativa é bem pensada, os problemas que a tripulação precisa resolver não são óbvios e nada acontece por acaso ali. Nada cai do céu para facilitar a resolução de um problema. A gente sabe quando parte da tripulação vai até o monumento que algo vai dar errado. Mas, como as coisas vão dar errado é que é arma secreta do autor. A gente compreende facilmente o mundo criado pelo autor, mesmo que existam alguns elementos complexos a mais. Mas, eles não são necessários à história e o autor toca pouco nesses assuntos. Já disse várias vezes no passado: construção de mundo é legal, e talvez a parte mais gostosa de escrever uma história; só que ela precisa servir a ela e não ser o extra.
Essa é uma narrativa de sobrevivência onde a tripulação precisa resolver suas questões internas para alcançar o seu objetivo. Não há espaço para trabalhar todos os personagens da trama, mas Fideli consegue dar traços interessantes a cada um deles, distinguindo-os entre si. Ou seja, eles não estão apenas no fundo, servem a alguma função. Mesmo a IA tem seus desejos revelados a partir de um detalhe da trama. E é interessante perceber como o autor consegue nos dar o seu ponto de vista, normalmente pontuado por um pragmatismo e racionalismo típicos de uma máquina. Mas, aos poucos vamos vendo que ela faz parte tanto da tripulação como qualquer outro. A capitã tem aquele senso de responsabilidade inerente aos capitães de embarcações. Mesmo assim, vemos suas fragilidades diante do que acontece ao seu redor. Suas relações com outros membros da tripulação e opiniões podem e se chocam de fato com outras pessoas ali naquele meio. Uma situação extrema que vai colocar os sentimentos de todos no limite.
Curioso a organização escolher fechar a coletânea com duas histórias que tem IAs como protagonistas. E uma ótima história também. Só achei um pouco longa demais e alguns trechos poderiam ter sido cortados. Novamente: é um conto e quando aparecem "barrigas" na trama, isso prejudica o dinamismo da história. Só que a ideia sobre o que cortar e o que deixar é algo bastante subjetivo. E cada leitor vai ter sua própria opinião de aonde cortar e se deve ou não cortar. Mesmo assim, vale demais a leitura.
Ficha Técnica:
Nome: Vislumbres de um Futuro Amargo
Organizado por Damares Barradas e Gabriela Colicigno
Editora: MAGH
Número de Paginas: 204
Ano de Publicação: 2020
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